1. Os filhos do feitor de Calecut – Recortes de Pequena história, Elaine Sanceau
Na luzida expedição enviada à Índia, em 1500, com dupla missão diplomática e comercial, seguia o rico e influente Aires Correia. Figura de facetas várias: mercador, afirmam alguns, armador de naus, acrescentam outros (não foi a ele que o rei comprara a embarcação que levava mantimentos para a viagem de Vasco da Gama?) – Aires Correia, apesar das evidentes preocupações mercantis, era fidalgo de boa estirpe. Na armada de Pedro Álvares Cabral, ia como feitor nomeado pelo rei. Partia para um mundo de incertezas. Esta viagem era a segunda que se fazia à Índia, baseada nas informações trazidas por Vasco da Gama no ano anterior. Sobre os perigos da empresa, não havia dúvidas, e aos riscos dos mares, ainda pouco conhecidos, acrescentavam-se os das dúbias relações com o Samorim, já malquistado com os Portugueses pelas intrigas dos mercadores muçulmanos.
Tudo contingente e incerto, já se vê, mas esta geração era optimista. Haviam as coisas de correr como eles queriam! Tanto isto parecia a Aires Correia, que não somente aceitou a incumbência de feitor de Calecut, para permanecer esta terra mal conhecida depois da partida da armada, mas ainda levou consigo dois filhos menores que muito amava: os pequenos Aires e António, nenhum dos quais tinha mais de onze anos.
E lá foram os rapazinhos para a grande viagem. Para eles deve ter sido uma aventura maravilhosa. Puderam assistir a essa estranha e bela semana de Vera Crus, tão bem contada por Pêro Vaz de Caminha, colega de seu pai. Viram também as exóticas cidades de Moçambique e Quíloa; desembarcaram certamente em Melinde, onde os portugueses tiveram recepção festiva, e é de presumir que as famosas laranjas – muito mais doces que as de Portugal – não fossem o que menos agradou aos meninos.
Chegados a Calecut, na praia orlada de palmeiras, puderam admirar o «cerame» do Samorim – linda casa «feita sobre esteos, oitavada e toda aberta com varandas e corucheos, e galantarias, de maravilhosos lavores e marchetes de marfins, a lugares drapeada de prata e ouro».
Tudo contingente e incerto, já se vê, mas esta geração era optimista. Haviam as coisas de correr como eles queriam! Tanto isto parecia a Aires Correia, que não somente aceitou a incumbência de feitor de Calecut, para permanecer esta terra mal conhecida depois da partida da armada, mas ainda levou consigo dois filhos menores que muito amava: os pequenos Aires e António, nenhum dos quais tinha mais de onze anos.
E lá foram os rapazinhos para a grande viagem. Para eles deve ter sido uma aventura maravilhosa. Puderam assistir a essa estranha e bela semana de Vera Crus, tão bem contada por Pêro Vaz de Caminha, colega de seu pai. Viram também as exóticas cidades de Moçambique e Quíloa; desembarcaram certamente em Melinde, onde os portugueses tiveram recepção festiva, e é de presumir que as famosas laranjas – muito mais doces que as de Portugal – não fossem o que menos agradou aos meninos.
Chegados a Calecut, na praia orlada de palmeiras, puderam admirar o «cerame» do Samorim – linda casa «feita sobre esteos, oitavada e toda aberta com varandas e corucheos, e galantarias, de maravilhosos lavores e marchetes de marfins, a lugares drapeada de prata e ouro».
Era natural que os pequenos ficassem a bordo da nau, enquanto iam e vinham mensageiros entre os portugueses e o Samorim. Este, lisonjeado por ver um grande Rei dos confins da terra procurar a sua amizade, mas simultaneamente cheio de desconfiança, instilada pelos mercadores do mar Roxo receosos pelo monopólio do comércio da pimenta, não sabia o que havia de determinar.
Afinal as coisas começaram a correr bem. O Samorim aceitava a nova aliança e concedia aos portugueses feitoria em terra. Então, à ordem do capitão, Aires Correia desembarcou com 60 companheiros, acompanhados dos dois filhinhos, e levando mercadorias para trocar e vender. A casa oferecida era bela e espaçosa no centro de um grande jardim. Com a bandeira portuguesa a flutuar em cima do edifício, os portugueses sentiram-se bem. Dois mercadores, o árabe Coje Cemeceri, e Coje Bequi nascido na terra, foram destacados pelo Samorim para industriar os estrangeiros, que assim iam e vinham pela cidade, confiantes e satisfeitos.
Satisfeitos também estavam os meninos do feitor, pois depressa arranjaram um amiguinho. Coje Bequi trazia sempre com ele um filho seu, da idade dos pequenos portugueses. Não sei se estes tinham algum conhecimento da língua árabe – que seu pai, aliás, falava correntemente – mas entre crianças, o problema linguístico nunca impediu o bom entendimento. Aires e António brincavam com o mourinho, cujo pai simpatizou com eles, pois eram bonitos e educadinhos. Coje Bequi levava-os amiúde para sua casa, e lá ficavam às vezes dias seguidos com as mulheres e crianças do harém. Noutras ocasiões o feitor ia ao paço do Samorim, e fazia-se acompanhar pelos filhos. O soberano indiano folgava muito de ver os meninos tão branquinhos e tão formosos, e mimoseava-os com brinquedos e bugigangas.
Certamente eram eles os únicos a viver felizes e despreocupados, no meio das intrigas e malquerenças, que os inimigos dos portugueses não tardavam a tecer. Os magnates do mar Vermelho, fulos perante a ameaça de concorrência no comércio da pimenta, até então seu exclusivo, enchiam os ouvidos do volúvel Samorim com acusações e calúnias, respeitantes aos recém-vindos. Aires Correia começou a ver as coisas mal paradas, pois sonegavam-lhe a carga para as naus. De parte a parte houve queixas, réplicas e tréplicas, mas o feitor nem sequer suspeitava da traição que Coje Cemeceri, rival do bom Coje Bequi, ia tramando. Foi colhido inteiramente de surpresa uma bela manhã, quando ouviu de repente gritos e vozearia. No mesmo instante, o seu amigo Coje Bequi irrompeu na feitoria, ofegante e transtornado, não podendo senão balbuciar com gesto desesperado: «Aires Correia! Aires Correia!» e logo se seguiu uma turba armada, furiosa e ululante, que se precipitou sobre a casa.
Afinal as coisas começaram a correr bem. O Samorim aceitava a nova aliança e concedia aos portugueses feitoria em terra. Então, à ordem do capitão, Aires Correia desembarcou com 60 companheiros, acompanhados dos dois filhinhos, e levando mercadorias para trocar e vender. A casa oferecida era bela e espaçosa no centro de um grande jardim. Com a bandeira portuguesa a flutuar em cima do edifício, os portugueses sentiram-se bem. Dois mercadores, o árabe Coje Cemeceri, e Coje Bequi nascido na terra, foram destacados pelo Samorim para industriar os estrangeiros, que assim iam e vinham pela cidade, confiantes e satisfeitos.
Satisfeitos também estavam os meninos do feitor, pois depressa arranjaram um amiguinho. Coje Bequi trazia sempre com ele um filho seu, da idade dos pequenos portugueses. Não sei se estes tinham algum conhecimento da língua árabe – que seu pai, aliás, falava correntemente – mas entre crianças, o problema linguístico nunca impediu o bom entendimento. Aires e António brincavam com o mourinho, cujo pai simpatizou com eles, pois eram bonitos e educadinhos. Coje Bequi levava-os amiúde para sua casa, e lá ficavam às vezes dias seguidos com as mulheres e crianças do harém. Noutras ocasiões o feitor ia ao paço do Samorim, e fazia-se acompanhar pelos filhos. O soberano indiano folgava muito de ver os meninos tão branquinhos e tão formosos, e mimoseava-os com brinquedos e bugigangas.
Certamente eram eles os únicos a viver felizes e despreocupados, no meio das intrigas e malquerenças, que os inimigos dos portugueses não tardavam a tecer. Os magnates do mar Vermelho, fulos perante a ameaça de concorrência no comércio da pimenta, até então seu exclusivo, enchiam os ouvidos do volúvel Samorim com acusações e calúnias, respeitantes aos recém-vindos. Aires Correia começou a ver as coisas mal paradas, pois sonegavam-lhe a carga para as naus. De parte a parte houve queixas, réplicas e tréplicas, mas o feitor nem sequer suspeitava da traição que Coje Cemeceri, rival do bom Coje Bequi, ia tramando. Foi colhido inteiramente de surpresa uma bela manhã, quando ouviu de repente gritos e vozearia. No mesmo instante, o seu amigo Coje Bequi irrompeu na feitoria, ofegante e transtornado, não podendo senão balbuciar com gesto desesperado: «Aires Correia! Aires Correia!» e logo se seguiu uma turba armada, furiosa e ululante, que se precipitou sobre a casa.
Os poucos portugueses, quase sem armas, defenderam-se heroicamente, mas não houve tempo, nem para organizar a resistência, nem para que chegassem reforços da armada. Seguiu-se uma carnificina sem piedade. Só escaparam dois ou três, que conseguiram chegar à praia e deitar-se ao mar. Aires Correia morreu combatendo, e a feitoria foi posta a saque.
Pedro Álvares Cabral, horrorizado, viu o fracasso da sua missão em Calecut. Mandou para terá os reféns indianos que tinha a bordo – para quê, dizia, fazer represália nestes inocentes? –, mas bombardeou as casas da praia e os paços do Samorim, antes de se fazer à vela para Cochim, cujo rei o convidava para aí tomar a pimenta.
E os meninos do feitor? A seu respeito, o capitão recebera recado do fiel Coje Bequi. Os rapazes estavam em sua casa
vivos e sãos, e também lá se encontravam três portugueses feridos, que descobriu num pardieiro, escondidos debaixo da palha suja.
De Cochim, a armada pesadamente carregada largou para o reino. Os dois pequenos e os três portugueses ficaram em Calecut, aos cuidados do bom Coje Bequi. Não era isto sem perigo para ele, e, para os homens, sobretudo, não havia segurança, pois facilmente haviam de ser descobertos e denunciados. Coje Bequi resolveu mandá-los para longe da cidade, para viverem nas suas terras com os lavradores. Mandou-lhes rapar as cabeças e as barbas, vestiu-os com trajes de mouros, e deu-lhes azeites com que se untassem, recomendando-lhes «que se pusessem sempre ao sol, o que elles fezeram que em pouco tempo tornar-se-ão tõa pretos como os proprios da terra».
Quanto aos meninos, vestidos como mourinhos, ficaram algum tempo em casa de Coje Bequi, entre suas mulheres, como seus filhos. Aí não corriam grande perigo, ao que parecia, pois o harém era vedado aos homens estranhos à família, mas o pior foi que o Samorim se lembrou deles. Que era feito dos rapazinhos? – perguntou a Coje Bequi. Eram mortos ou vivos? Coje Bequi jurou: que ele lhe cortasse a cabeça se tivesse a menor ideia! Só podia dizer que, no dia da chacina, vira na praia um deles às costas de um negro, que se sumiu na turba, não mais aparecendo.
O Samorim não acreditou. Que lhe trouxesse já os meninos, ordenou, senão havia de ser preso e perder quanto tinha! Muito aflito, o bom Coje Bequi correu à casa, e bem depressa despachou os meninos para a aldeia, onde já se encontravam os três portugueses. Instalou-os todos numa casa perto da praia com uma mulher moura, que se fazia passar por mãe dos rapazes. Entregues aos cuidados desta, lá ficaram os pequenos, perdidos nesse canto esquecido, enquanto o valente Coje Bequi foi fazer frente à raiva do Samorim. Foi preso, espoliado e perseguido, e afinal teve de ir viver para doze léguas de Calecut, em casa de parentes mas nunca denunciou os portugueses. Foi só em 1503, quando Duarte Pacheco, capitão-mor do mar, chegou a Cananor, que Coje Bequi conseguiu enviar uma mensagem, dizendo que os filhos de Aires Correia estavam vivos, bem como os três homens que escondera.
Nessa altura, o Samorim, tão volúvel como um cata-vento, tinha-se mostrado disposto a fazer as pazes com os portugueses. Já andavam alguns destes em Calecut, pois falava-se em abrir outra feitoria. Que estes homens se retirassem imediatamente, aconselhava então Coje Bequi, já que soubera estar o Samorim a armar outra traição, que desfecharia em nova tragédia!
Duarte Pacheco tomou desde logo providências. Assim, numa noite escura de tempestade, uma caravela veio surgir ao largo da costa de Calecut, cujas luzes se viam bruxulear ao longe. As trevas cerravam-se. Ribombou o trovão, e a chuva torrencial dos trópicos caiu em catadupas sobre as ondas revoltas. Como fantasmas deslizando na escuridão, dez portugueses desembarcara em profundo silêncio, levando lanças e panelas de fogo. Atrás, vinham doze pescadores malabares, falando na sua língua entre si, para que, se alguém sentisse a passagem não suspeitasse da presença de estrangeiros. Debaixo da chuva sempre a cair a cântaros, guiados por um criado de Coje Bequi, entraram na cidade e chegaram à casa onde se encontravam os portugueses. Já prevenidos, estes esperavam. Sem proferir palavra, em grande silêncio, fizeram as trouxas e saíram para a rua, empunhando cada qual a sua espada. Andando em fila, chegaram à casa fora da cidade, onde ficavam os filhos de Aires Correia e os três fugitivos, que sem o menor ruído se levantaram e se meteram na fila. «Todos rezando, pedindo a Nosso Senhor que os salvasse», desceram à praia. Nenhum vulto descortinavam no espesso negrume; terra e mar confundiam-se nas trevas envolventes. Um marinheiro lançou-se a nado nas profundidades negras, para chamar as almadias, que estavam de prevenção. Os treze homens, os dois rapazes e a mulher que lhes servia de mãe, embarcaram nelas; os marinheiros, que não cabiam, acompanhavam ao lado agarrando-se por cordas. Assim, alcançaram a caravela, para onde todos subiram - «que Nosso Senhor por sua misericórdia os salvou, de grandes mares da terra que fazia o vento e a chuiva».
Depois do perigo, a alegria – os abraços, os parabéns. Todos se viam livres da morte; os órfãos e refugiados, enfim reunidos aos seus, estavam rijos e sãos mas tão pretos como malabares. Na hora da viração do dia imediato, entraram em Cochim, com bandeiras desfraldadas e salvas de artilharia. No desembarque veio recebê-los o capitão-mor «com lágrimas de prazer». O rei de Cochim, sempre amigo, mostrava-se doido de prazer. Quis ouvir todos os pormenores da ousada fuga. E mais contente ainda ficou por ver ludibriado o seu rival de Calecut. Na verdade, exclamou em conclusão: «nom há cousa no mundo que os Portugueses nom fação se quiserem!»
Pedro Álvares Cabral, horrorizado, viu o fracasso da sua missão em Calecut. Mandou para terá os reféns indianos que tinha a bordo – para quê, dizia, fazer represália nestes inocentes? –, mas bombardeou as casas da praia e os paços do Samorim, antes de se fazer à vela para Cochim, cujo rei o convidava para aí tomar a pimenta.
E os meninos do feitor? A seu respeito, o capitão recebera recado do fiel Coje Bequi. Os rapazes estavam em sua casa
vivos e sãos, e também lá se encontravam três portugueses feridos, que descobriu num pardieiro, escondidos debaixo da palha suja.
De Cochim, a armada pesadamente carregada largou para o reino. Os dois pequenos e os três portugueses ficaram em Calecut, aos cuidados do bom Coje Bequi. Não era isto sem perigo para ele, e, para os homens, sobretudo, não havia segurança, pois facilmente haviam de ser descobertos e denunciados. Coje Bequi resolveu mandá-los para longe da cidade, para viverem nas suas terras com os lavradores. Mandou-lhes rapar as cabeças e as barbas, vestiu-os com trajes de mouros, e deu-lhes azeites com que se untassem, recomendando-lhes «que se pusessem sempre ao sol, o que elles fezeram que em pouco tempo tornar-se-ão tõa pretos como os proprios da terra».
Quanto aos meninos, vestidos como mourinhos, ficaram algum tempo em casa de Coje Bequi, entre suas mulheres, como seus filhos. Aí não corriam grande perigo, ao que parecia, pois o harém era vedado aos homens estranhos à família, mas o pior foi que o Samorim se lembrou deles. Que era feito dos rapazinhos? – perguntou a Coje Bequi. Eram mortos ou vivos? Coje Bequi jurou: que ele lhe cortasse a cabeça se tivesse a menor ideia! Só podia dizer que, no dia da chacina, vira na praia um deles às costas de um negro, que se sumiu na turba, não mais aparecendo.
O Samorim não acreditou. Que lhe trouxesse já os meninos, ordenou, senão havia de ser preso e perder quanto tinha! Muito aflito, o bom Coje Bequi correu à casa, e bem depressa despachou os meninos para a aldeia, onde já se encontravam os três portugueses. Instalou-os todos numa casa perto da praia com uma mulher moura, que se fazia passar por mãe dos rapazes. Entregues aos cuidados desta, lá ficaram os pequenos, perdidos nesse canto esquecido, enquanto o valente Coje Bequi foi fazer frente à raiva do Samorim. Foi preso, espoliado e perseguido, e afinal teve de ir viver para doze léguas de Calecut, em casa de parentes mas nunca denunciou os portugueses. Foi só em 1503, quando Duarte Pacheco, capitão-mor do mar, chegou a Cananor, que Coje Bequi conseguiu enviar uma mensagem, dizendo que os filhos de Aires Correia estavam vivos, bem como os três homens que escondera.
Nessa altura, o Samorim, tão volúvel como um cata-vento, tinha-se mostrado disposto a fazer as pazes com os portugueses. Já andavam alguns destes em Calecut, pois falava-se em abrir outra feitoria. Que estes homens se retirassem imediatamente, aconselhava então Coje Bequi, já que soubera estar o Samorim a armar outra traição, que desfecharia em nova tragédia!
Duarte Pacheco tomou desde logo providências. Assim, numa noite escura de tempestade, uma caravela veio surgir ao largo da costa de Calecut, cujas luzes se viam bruxulear ao longe. As trevas cerravam-se. Ribombou o trovão, e a chuva torrencial dos trópicos caiu em catadupas sobre as ondas revoltas. Como fantasmas deslizando na escuridão, dez portugueses desembarcara em profundo silêncio, levando lanças e panelas de fogo. Atrás, vinham doze pescadores malabares, falando na sua língua entre si, para que, se alguém sentisse a passagem não suspeitasse da presença de estrangeiros. Debaixo da chuva sempre a cair a cântaros, guiados por um criado de Coje Bequi, entraram na cidade e chegaram à casa onde se encontravam os portugueses. Já prevenidos, estes esperavam. Sem proferir palavra, em grande silêncio, fizeram as trouxas e saíram para a rua, empunhando cada qual a sua espada. Andando em fila, chegaram à casa fora da cidade, onde ficavam os filhos de Aires Correia e os três fugitivos, que sem o menor ruído se levantaram e se meteram na fila. «Todos rezando, pedindo a Nosso Senhor que os salvasse», desceram à praia. Nenhum vulto descortinavam no espesso negrume; terra e mar confundiam-se nas trevas envolventes. Um marinheiro lançou-se a nado nas profundidades negras, para chamar as almadias, que estavam de prevenção. Os treze homens, os dois rapazes e a mulher que lhes servia de mãe, embarcaram nelas; os marinheiros, que não cabiam, acompanhavam ao lado agarrando-se por cordas. Assim, alcançaram a caravela, para onde todos subiram - «que Nosso Senhor por sua misericórdia os salvou, de grandes mares da terra que fazia o vento e a chuiva».
Depois do perigo, a alegria – os abraços, os parabéns. Todos se viam livres da morte; os órfãos e refugiados, enfim reunidos aos seus, estavam rijos e sãos mas tão pretos como malabares. Na hora da viração do dia imediato, entraram em Cochim, com bandeiras desfraldadas e salvas de artilharia. No desembarque veio recebê-los o capitão-mor «com lágrimas de prazer». O rei de Cochim, sempre amigo, mostrava-se doido de prazer. Quis ouvir todos os pormenores da ousada fuga. E mais contente ainda ficou por ver ludibriado o seu rival de Calecut. Na verdade, exclamou em conclusão: «nom há cousa no mundo que os Portugueses nom fação se quiserem!»
2. Um amigo de Afonso de Albuquerque – Recortes de Pequena história, Elaine Sanceau
Ao grande governador, sobravam inimigos. O génio parece ter o condão de fazer espumar de raiva os espíritos mesquinhos. Por isso não admira que, à volta de Albuquerque, qual enxame de vespas, zumbissem os invejosos e intriguistas, da laia de um Gaspar Pereira, um António Real, um Lourenço Moreno e outros que tais – mas também teve bons amigos. Note-se, contudo, que estes eram todos homens de bem. Do estudo dos documentos e cronistas, sobressai claramente que os melhores elementos que então havia na Índia – quer os mais honrados, quer os mais valentes – eram devotos do governador.
Entre os mais distintos e dedicados desse grupo de escol, para não falar de Pêro de Alpoem – que é digno de artigo à parte, salienta-se Diogo Fernandes de Beja, moço da câmara de el-rei D. Manuel, que chegou à Índia em 1510, na armada do marechal D. Fernando Coutinho. Figura simpática, a deste fidalgo alentejano – muito «gentilhomem» fisicamente, conforme Gaspar Correia, guerreiro destemido, marítimo competente, amado de seus homens e fino diplomata. De Diogo Fernandes nunca ouvimos dizer senão bem, e era ele, afirma o mesmo Correia, «muyto da amizade do Governador». Abona isto o próprio Albuquerque, escrevendo ao Rei, que devia «daver prazer de a vossa guarda-roupa criar um tam bom homem e que tam booa conta sempre deu de sy e dos carregos que lhe pus nas mãos». E assim se mostrou, de facto, continuadamente Diogo Fernandes durante os seis anos que – Albuquerque governou a Índia, acompanhando-o fielmente em todas as peripécias e perigos, até àquela triste manhã de Dezembro de 1515, quando desembarcou em Goa com os restos mortais do seu grande capitão.
Em 1510, mal chegado com o Governador a Cochim, Diogo Fernandes assistiu à infeliz expedição contra Calecut, comandada pelo marechal, cuja teimosia fez fracassar a tentativa. Foi só o expediente de Albuquerque que conseguiu o reembarque, pondo a salvo a maior parte das tropas. Mas apesar de todo o seu esforço, e com perigo da própria vida, não pôde evitar a morte do imprudente marechal. Na sangrenta confusão da última fase do combate, quando Albuquerque se lançou de novo para o cetro da tormenta - «nam chegou comygo omde estava ho marychall», escreve ele, «senam a minha bandeira e Digo Fernandes».
Nesse mesmo ano, Diogo Fernandes tomou parte honrosa na primeira e segunda tomada de Goa Às forças do Idalcão. Esteve ao lado do Governador - «que elle chamou que com elle fosse» - no glorioso dia de 25 de Novembro, em que Goa se tornou portuguesa para sempre. Era a sua sina: onde quer que se praticasse façanhas, era certo estar presente.
Não foi com Albuquerque a Malaca. Ficou encarregado de outra missão de grande responsabilidade: a de andar com a armada da costa de além ao largo do cabo de Gardafui, para impedir a passagem das naus de Meca. Em seguida, devia ir desmantelar a fortaleza de Socotorá, julgada inútil, dirigindo-se depois ao Golfo Pérsico para aguardar ali o Governador, e, não o encontrando, voltar a Goa, trazendo com ele as páreas de Ormuz.
Tudo isto cumpriu pontualmente Digo Fernandes. E fez mais e melhor. Chegando a Goa, antes do Governador, achou que tudo ia às avessas – a cidade cercada pelas forças do Idalcão; o capitão deixado por Albuquerque morto em combate; o capitão interino, Diogo Mendes de Vasconcelos, tomando boa conta da defesa mas sem querer preocupar-se com mais nada, por estar desavindo com o Governador; e o capitão do mar, Manuel de Lacerda, agravado por não ter sido nomeado para a capitania de Goa – «que lhe pareceo que a mereceo milhor que quantos avia na India» -, desinteressando-se de todos os negócios internos da cidade. De tudo quanto Albuquerque ordenara antes de partir, nada estava feito, «pois nam avia quem ysto folgava de grangear e acrecentar».
Entre os mais distintos e dedicados desse grupo de escol, para não falar de Pêro de Alpoem – que é digno de artigo à parte, salienta-se Diogo Fernandes de Beja, moço da câmara de el-rei D. Manuel, que chegou à Índia em 1510, na armada do marechal D. Fernando Coutinho. Figura simpática, a deste fidalgo alentejano – muito «gentilhomem» fisicamente, conforme Gaspar Correia, guerreiro destemido, marítimo competente, amado de seus homens e fino diplomata. De Diogo Fernandes nunca ouvimos dizer senão bem, e era ele, afirma o mesmo Correia, «muyto da amizade do Governador». Abona isto o próprio Albuquerque, escrevendo ao Rei, que devia «daver prazer de a vossa guarda-roupa criar um tam bom homem e que tam booa conta sempre deu de sy e dos carregos que lhe pus nas mãos». E assim se mostrou, de facto, continuadamente Diogo Fernandes durante os seis anos que – Albuquerque governou a Índia, acompanhando-o fielmente em todas as peripécias e perigos, até àquela triste manhã de Dezembro de 1515, quando desembarcou em Goa com os restos mortais do seu grande capitão.
Em 1510, mal chegado com o Governador a Cochim, Diogo Fernandes assistiu à infeliz expedição contra Calecut, comandada pelo marechal, cuja teimosia fez fracassar a tentativa. Foi só o expediente de Albuquerque que conseguiu o reembarque, pondo a salvo a maior parte das tropas. Mas apesar de todo o seu esforço, e com perigo da própria vida, não pôde evitar a morte do imprudente marechal. Na sangrenta confusão da última fase do combate, quando Albuquerque se lançou de novo para o cetro da tormenta - «nam chegou comygo omde estava ho marychall», escreve ele, «senam a minha bandeira e Digo Fernandes».
Nesse mesmo ano, Diogo Fernandes tomou parte honrosa na primeira e segunda tomada de Goa Às forças do Idalcão. Esteve ao lado do Governador - «que elle chamou que com elle fosse» - no glorioso dia de 25 de Novembro, em que Goa se tornou portuguesa para sempre. Era a sua sina: onde quer que se praticasse façanhas, era certo estar presente.
Não foi com Albuquerque a Malaca. Ficou encarregado de outra missão de grande responsabilidade: a de andar com a armada da costa de além ao largo do cabo de Gardafui, para impedir a passagem das naus de Meca. Em seguida, devia ir desmantelar a fortaleza de Socotorá, julgada inútil, dirigindo-se depois ao Golfo Pérsico para aguardar ali o Governador, e, não o encontrando, voltar a Goa, trazendo com ele as páreas de Ormuz.
Tudo isto cumpriu pontualmente Digo Fernandes. E fez mais e melhor. Chegando a Goa, antes do Governador, achou que tudo ia às avessas – a cidade cercada pelas forças do Idalcão; o capitão deixado por Albuquerque morto em combate; o capitão interino, Diogo Mendes de Vasconcelos, tomando boa conta da defesa mas sem querer preocupar-se com mais nada, por estar desavindo com o Governador; e o capitão do mar, Manuel de Lacerda, agravado por não ter sido nomeado para a capitania de Goa – «que lhe pareceo que a mereceo milhor que quantos avia na India» -, desinteressando-se de todos os negócios internos da cidade. De tudo quanto Albuquerque ordenara antes de partir, nada estava feito, «pois nam avia quem ysto folgava de grangear e acrecentar».
Ora Digo Fernandes era fino - «todas estas cousas entendeu sem mostrar n´ysso entendimento». E era ainda, como diz Correia, «nobre de condição», e folgava muito «de glorificar as cousas de Afonso d´Albuquerque, de que era grande amigo». Abstendo-se, pois, de todo o comentário desagradável, tomou uma estância nos muros da cidade e, aposentando-se nos cubelos, mandou fazer casas de palha para os homens, a quem dava «grande mesa, fazendo grandes gastos». Depreende-se não haver quem não gostasse de Diogo Fernandes. Com o seu tacto habitual, e sempre «sem n´ysso mostrar entendimento», em conversa amena com o capitão conseguiu que este tomasse as providências já sugeridas por Albuquerque, no sentido de organizar a administração de Goa, elegendo almotacés, vereadores e outros oficiais, com «que todos muytos folgavão». Assim, quando o Governador, depois da demorada e atribulada torna-viagem de Malaca, regressou à sua querida cidade, achou tudo já posto «em começo de boa ordem».
Ainda noutra coisa, antes desta, o fiel Diogo Fernandes mostrara a sua desinteressada devoção. Quando chegara a armada do Reino, ele dissuadira os capitães de intentar o descerco da cidade sem a vinda de Albuquerque – porque ele era «muyto amigo do Governador e quis estorvar que ninguém ganhasse esta honra senão elle». De facto, o conquistador ganhou não pouca honra na ousada manobra com que livrou Goa da opressão dos Turcos, ao tomar Benasterim ao inimigo. Não se vai no entanto sem dizer que nesta jornada colaborou Diogo Fernandes, citando Albuquerque seu nome entre vários «homens de bem» que ficaram feridos e queimados nesse dia.
Na viagem de exploração do mar Roxo, o Governador embarcou na nau capitaneada pelo leal amigo, o qual, nas escadas postas às muralhas de Adem, apanhou uma espingardada no peito, «de que trouxe o pelouro enquanto viveo», informa Gaspar Correia. Mas, apesar de «muyto ferido» - no dizer de Albuquerque -, quando nas areias do mar Vermelho a nau tocou em seco, Diogo Fernandes logo «sayo acima e mandou muy bem a não, e trabalhou muyto pela sua salvaçam».
Não era só nos campos de batalha ou nos perigos do mar que Diogo Fernandes brilhava. No ano de 1514, vemo-lo encarregado de uma luzida embaixada à corte de Cambaia, com a delicada missão de sondar as disposições do soberano deste grande reino, com referência a uma fortaleza portuguesa em Dio. Diogo Fernandes era «homem abastado e grandioso». Compreendia perfeitamente as ideias de Albuquerque sobre a necessidade de fazer figura nas deslumbrantes cortes orientais, e não se importava de gastar dinheiro no desempenho do seu papel. Mandou fazer ricos vestidos, levou preciosas pratas para serviço de mesa. Para o seu aposento e de seu séquito, armou uma magnífica tenda, onde podiam caber 500 pessoas. De fora era coberta de panos brancos e coloridos, e por dentro toda forrada de seda. Tinha compartimentos de câmara e sala, havendo naquela um leito dourado, com paramentos e colchas de seda e almofadas de cetim, e nesta viam-se cadeiras rasas e escabelos cobertos de belas alcatifas. Diogo Fernandes levava também cozinheiros muito bons, para banquetear os grandes da terra «com muytas conservas e vinhos finos e cheirosos». E, para maior fausto, o Governador dera ao seu embaixador uma garbosa guarda de cem canarins com suas armas.
Ainda noutra coisa, antes desta, o fiel Diogo Fernandes mostrara a sua desinteressada devoção. Quando chegara a armada do Reino, ele dissuadira os capitães de intentar o descerco da cidade sem a vinda de Albuquerque – porque ele era «muyto amigo do Governador e quis estorvar que ninguém ganhasse esta honra senão elle». De facto, o conquistador ganhou não pouca honra na ousada manobra com que livrou Goa da opressão dos Turcos, ao tomar Benasterim ao inimigo. Não se vai no entanto sem dizer que nesta jornada colaborou Diogo Fernandes, citando Albuquerque seu nome entre vários «homens de bem» que ficaram feridos e queimados nesse dia.
Na viagem de exploração do mar Roxo, o Governador embarcou na nau capitaneada pelo leal amigo, o qual, nas escadas postas às muralhas de Adem, apanhou uma espingardada no peito, «de que trouxe o pelouro enquanto viveo», informa Gaspar Correia. Mas, apesar de «muyto ferido» - no dizer de Albuquerque -, quando nas areias do mar Vermelho a nau tocou em seco, Diogo Fernandes logo «sayo acima e mandou muy bem a não, e trabalhou muyto pela sua salvaçam».
Não era só nos campos de batalha ou nos perigos do mar que Diogo Fernandes brilhava. No ano de 1514, vemo-lo encarregado de uma luzida embaixada à corte de Cambaia, com a delicada missão de sondar as disposições do soberano deste grande reino, com referência a uma fortaleza portuguesa em Dio. Diogo Fernandes era «homem abastado e grandioso». Compreendia perfeitamente as ideias de Albuquerque sobre a necessidade de fazer figura nas deslumbrantes cortes orientais, e não se importava de gastar dinheiro no desempenho do seu papel. Mandou fazer ricos vestidos, levou preciosas pratas para serviço de mesa. Para o seu aposento e de seu séquito, armou uma magnífica tenda, onde podiam caber 500 pessoas. De fora era coberta de panos brancos e coloridos, e por dentro toda forrada de seda. Tinha compartimentos de câmara e sala, havendo naquela um leito dourado, com paramentos e colchas de seda e almofadas de cetim, e nesta viam-se cadeiras rasas e escabelos cobertos de belas alcatifas. Diogo Fernandes levava também cozinheiros muito bons, para banquetear os grandes da terra «com muytas conservas e vinhos finos e cheirosos». E, para maior fausto, o Governador dera ao seu embaixador uma garbosa guarda de cem canarins com suas armas.
Diogo Fernandes, belo homem, de modos insinuantes, trajando jorneia de cetim carmesim forrado de damasco, e gibão do mesmo teor, mangas com muitas pontas de ouro e aljôfar, calças de tafetá azul com rosas douradas, gorro de veludo com penacho branco na cabeça, e pantufas de veludo nos pés – fez muito boa impressão na corte magnífica do grande reino de Cambaia. O rei mostrou prazer na sua embaixada. Encheu os enviados de presentes, para si e para o Governador – entre outros um rinoceronte para D. Manuel! Ofereceu meia dúzia de pontos para escolher para a fortaleza – tudo menos Dio, que a não queria largar o seu capitão favorito Maliqueaiaz – de maneira que a embaixada, se bem que servindo para enaltecer o prestígio português, não chegou desta vez à conclusão.
Foi logo a seguir a isto que Diogo Fernandes, comandando a nau «Frol da Rosa», acompanhou a última expedição de seu capitão-mor, de que resultou a segunda – e definitiva – conquista de Ormuz. Aí, Diogo Fernandes assistiu a tudo – à morte do guazil Ras Ahmed, de cuja tirania o Governador veio livrar o moço rei, à fundação da fortaleza portuguesa, ao trabalho insano da sua construção nos ardentes meses de Verão do golfo Pérsico, até que Afonso de Albuquerque já moribundo, embarcou para a Índia, escolhendo a nau do amigo Diogo Fernandes. Este acompanhou os últimos instantes dolorosos do herói, ferido de morte pela ingratidão régia. Foi para ele dirigido o famoso desabafo: - Mal com el-rei por amor dos homens, mas com os homens por amor de el-rei! - «Que vos parece Senhor Diogo Fernandes?»
Como era de esperar, Diogo Fernandes não se deixou ficar na Índia, durante o governo de Lopo Soares, com o espectador da inveja selvagem com que este se punha a desfazer todas as «cousas de Afonso de Albuquerque». Regressou ao Reino. Para receber de seu rei recompensa, digna de tantos anos de abnegado serviço no Oriente? Não nos consta que tal sucedesse. Somente em 1519, governando Diogo Lopes de Sequeira, vemos Diogo Fernandes voltar à Índia, provido na capitania da fortaleza de Dio – ainda por fazer! Encontramos o homem sempre file a si mesmo, destemido sem espalhafato, merecendo a confiança de seus superiores, benquisto por ser amigo de seus subordinados, e leal camarada de seus iguais. Ainda assim, foi vítima da mesquinha inveja de certos deles, que contrariavam a conquista de Dio – só porque a capitania lhe havia de ficar.
Afinal, nunca chegou a servi-la. Dio só veio a ser portuguesa catorze anos mais tarde. O bom e valente Diogo Fernandes morreu no entanto em 1521, de um pelouro perdido, no decurso de um combate naval ao largo de Chaul. Morreu no posto de honra, que nunca na vida abandonara.
Foi logo a seguir a isto que Diogo Fernandes, comandando a nau «Frol da Rosa», acompanhou a última expedição de seu capitão-mor, de que resultou a segunda – e definitiva – conquista de Ormuz. Aí, Diogo Fernandes assistiu a tudo – à morte do guazil Ras Ahmed, de cuja tirania o Governador veio livrar o moço rei, à fundação da fortaleza portuguesa, ao trabalho insano da sua construção nos ardentes meses de Verão do golfo Pérsico, até que Afonso de Albuquerque já moribundo, embarcou para a Índia, escolhendo a nau do amigo Diogo Fernandes. Este acompanhou os últimos instantes dolorosos do herói, ferido de morte pela ingratidão régia. Foi para ele dirigido o famoso desabafo: - Mal com el-rei por amor dos homens, mas com os homens por amor de el-rei! - «Que vos parece Senhor Diogo Fernandes?»
Como era de esperar, Diogo Fernandes não se deixou ficar na Índia, durante o governo de Lopo Soares, com o espectador da inveja selvagem com que este se punha a desfazer todas as «cousas de Afonso de Albuquerque». Regressou ao Reino. Para receber de seu rei recompensa, digna de tantos anos de abnegado serviço no Oriente? Não nos consta que tal sucedesse. Somente em 1519, governando Diogo Lopes de Sequeira, vemos Diogo Fernandes voltar à Índia, provido na capitania da fortaleza de Dio – ainda por fazer! Encontramos o homem sempre file a si mesmo, destemido sem espalhafato, merecendo a confiança de seus superiores, benquisto por ser amigo de seus subordinados, e leal camarada de seus iguais. Ainda assim, foi vítima da mesquinha inveja de certos deles, que contrariavam a conquista de Dio – só porque a capitania lhe havia de ficar.
Afinal, nunca chegou a servi-la. Dio só veio a ser portuguesa catorze anos mais tarde. O bom e valente Diogo Fernandes morreu no entanto em 1521, de um pelouro perdido, no decurso de um combate naval ao largo de Chaul. Morreu no posto de honra, que nunca na vida abandonara.
3. Heroínas de Dio – Recortes de Pequena história, Elaine Sancea
Foi em fins de Setembro de 1538, que a formidável armada do turco Suleimão Paxá apareceu ao largo de Dio. Eram perto de cem naus, todas flamejantes de bandeiras vermelhas e tripuladas por homens também vestidos de vermelho. Chegaram a três léguas da fortaleza, e o vento acalmou. Ancoraram, então, para no dia seguinte abrir violento tiroteio contra a praça portuguesa. O perigo era grande para o punhado de bravos que havia já dois meses se defendia do assalto das forças terrestres do Gujerate. A cidade de Dio estava ocupada pelo inimigo, e a população portuguesa que lá vivia, tivera que se acolher à fortaleza.
O capitão António da Silveira, herói de altas façanhas na Índia, e os valentes que combatiam sob o seu comando estavam resolvidos a defender Dio até à morte. Nem rendição, nem capitulação – morreriam todos como homens! Mas que seria então das mulheres que estavam com eles em Dio? Acontecendo o pior – perdendo-se a fortaleza – haviam elas de ficar como despojo nas mãos do bárbaro muçulmano?
A minha nunca! – jurou Manuel de Vasconcelos, brioso cavaleiro madeirense e juiz da alfândega de Dio. O capitão mandava alguns doentes para Goa numa fusta; pedia que levassem nela também sua mulher, a nova e bonita Isabel da Veiga.
Para isto não estava porém D. Isabel. Como? Iria ela fugir deixando o marido em perigo? Por nada deste mundo consentia! Protestou, fez-se suplicante, carinhosa: então já não gostava dela, de contrário não a mandava embora! Porque estava descontente com ela? Dissesse-lhe a sua culpa – emendar-se-ia. Sempre não merecia o castigo de ser afastada da sua companhia! Ainda mais ficando ele no cerco…Ela não tinha medo, não. Junto dele nunca temia nada. Pelo contrário, era um gosto enfrentar o perigo ao lado dele, ao passo que, estando longe, morreria de aflição. A filhinha deles – essa, sim – podia e devia mandá-la para o avô, em Goa. Estando a pequena em segurança, ele e ela ficavam livres de preocupações. Que ela, sua mulher, fosse, isso não e não! Tanto falou, tanto teimou, que Manuel de Vasconcelos despachou a menina para Goa, deixando ficar a mãe, com grande contentamento desta.
Isabel iria mostrar o que valem as mulheres! Foi ter com a amiga Ana Fernandes, mulher do físico Fernão Lourenço: vamos fazer por ajudar! Depois foram chamar as companheiras. Os homens trabalhavam dia e noite para consertar os muros da fortaleza. Elas dariam uma mão. Sob a chefia de Ana e Isabel acarretaram terra e pedras, que levavam nas alcofas ou outras vasilhas para o muro. Assim os homens nunca tiveram de deixá-lo, para buscar o material.
O capitão António da Silveira, herói de altas façanhas na Índia, e os valentes que combatiam sob o seu comando estavam resolvidos a defender Dio até à morte. Nem rendição, nem capitulação – morreriam todos como homens! Mas que seria então das mulheres que estavam com eles em Dio? Acontecendo o pior – perdendo-se a fortaleza – haviam elas de ficar como despojo nas mãos do bárbaro muçulmano?
A minha nunca! – jurou Manuel de Vasconcelos, brioso cavaleiro madeirense e juiz da alfândega de Dio. O capitão mandava alguns doentes para Goa numa fusta; pedia que levassem nela também sua mulher, a nova e bonita Isabel da Veiga.
Para isto não estava porém D. Isabel. Como? Iria ela fugir deixando o marido em perigo? Por nada deste mundo consentia! Protestou, fez-se suplicante, carinhosa: então já não gostava dela, de contrário não a mandava embora! Porque estava descontente com ela? Dissesse-lhe a sua culpa – emendar-se-ia. Sempre não merecia o castigo de ser afastada da sua companhia! Ainda mais ficando ele no cerco…Ela não tinha medo, não. Junto dele nunca temia nada. Pelo contrário, era um gosto enfrentar o perigo ao lado dele, ao passo que, estando longe, morreria de aflição. A filhinha deles – essa, sim – podia e devia mandá-la para o avô, em Goa. Estando a pequena em segurança, ele e ela ficavam livres de preocupações. Que ela, sua mulher, fosse, isso não e não! Tanto falou, tanto teimou, que Manuel de Vasconcelos despachou a menina para Goa, deixando ficar a mãe, com grande contentamento desta.
Isabel iria mostrar o que valem as mulheres! Foi ter com a amiga Ana Fernandes, mulher do físico Fernão Lourenço: vamos fazer por ajudar! Depois foram chamar as companheiras. Os homens trabalhavam dia e noite para consertar os muros da fortaleza. Elas dariam uma mão. Sob a chefia de Ana e Isabel acarretaram terra e pedras, que levavam nas alcofas ou outras vasilhas para o muro. Assim os homens nunca tiveram de deixá-lo, para buscar o material.
Não se contentavam elas porém só com esta ajuda. Faziam tudo o que lhes vinha à mão. Cuidavam dos enfermos e atavam as feridas, juntando nas suas casas trapos e estopas para pensos e ligaduras, preparando boas camas sempre prontas para quem precisasse. Sem medi algum, passavam entre os tiros da artilharia inimiga esquecidas de tudo menos da sua missão útil ou piedosa.
Ana Fernandes, sendo a mais velha, era como mãe de todos. Apoiada num cajado, com as contas nas mãos, percorria de noite a muralha, levantando o moral com palavras animosas, e o físico com os gostosos manjares da sua cozinha. Sem ela ou as outras mulheres, confessa Lopo de Sousa Coutinho, o trabalho dos homens neste cerco teria sido mil vezes pior.
Elas mostraram-se heróicas até ao fim – destemidas no perigo e, o que para a mulher custa ainda mais, estóicas na dor. Conta o cronista de certa viúva portuguesa, que recebeu nos braços o filho moribundo, horrivelmente ferido no ventre. “Ó mãe!” – pedia ele “veja, eu vos peço primeiro a confissão que vossas lágrimas!” – e ela, “com face sossegada e olhos enxutos”, respondeu: “Filho, encomenda-te a Deus, e sê esforçado no morrer e com isso me consolarás.”. E quando o pobre rapaz, depois da confissão, passou desta vida, ela ficou ainda tão calma e corajosa “que os que a vinham consolar, em vez de lhe darem consolação, a recebiam dela”.
Esta atribulada mãe, no dia seguinte, perdeu o segundo filho no baluarte chamado dos Rumes, que, por traição, foi tomado pelo inimigo. Apesar de tão rude e imediato golpe, ela aguentou serena e silenciosa – exemplo heróico e cristão, comenta Lopo de Sousa.
Tão são as heroínas bem femininas, esquecidas de si mesmas na sua missão de curar e consolar. Outras raparigas valentes havia lá que não se contentavam em exercer o papel suave de auxiliar não-combatente. Certa Catarina Moreira, por exemplo, vestiu-se de homem, pegou numa chuça e, junta com outra companheira de armas, correu ao muro aquando de um rebate, bradando para os homens que se esforçassem, pois elas estavam ali para os ajudar! Catarina levou uma espingardada no ombro, cujo projéctil lhe saiu pelas costas. Nem assim houve quem a fizesse descer do muro. Estava boa ainda para matar um par de rumes – proclamava.
Da mesma brava têmpera era outra mulher casada, a quem disseram da tomada de dois turcos. Que era feito deles? – perguntou toda sôfrega, a um homem que passava. Não sabia, a bem dizer – foi a resposta – parecia-lhe porém que o capitão já os mandara soltar.
O quê? Soltar? E, inflamada de cólera, a mulher irrompeu pela casa, onde supunha que os cativos estivessem. Aí, viu sentado, a descansar, um certo Francisco de Gouveia, todo desfigurado e queimado de rosto, pés e mãos, a ponto de ser irreconhecível. Ela julgou que fosse o turco “O perro! E há de te soltar?” – bradou, e levantando a gamela que trazia nas mãos, ia quebrar a cabeça do pobre homem. Pulando de susto, ele conseguiu esquivar-se e deitou a fugir, perseguido pela fera bravia. Debalde gritava que, por amor de Deus o deixasse, que na outra casa estavam os turcos. Mas ela não queria acreditar: “Vede o perro como fala português espevitado! Pois não vos há-de valer, que vos hei-de fender esta gamela nessa cabeça!”. Foi preciso a intervenção de dois homens, para salvar Francisco de Gouveia.
Ana Fernandes, sendo a mais velha, era como mãe de todos. Apoiada num cajado, com as contas nas mãos, percorria de noite a muralha, levantando o moral com palavras animosas, e o físico com os gostosos manjares da sua cozinha. Sem ela ou as outras mulheres, confessa Lopo de Sousa Coutinho, o trabalho dos homens neste cerco teria sido mil vezes pior.
Elas mostraram-se heróicas até ao fim – destemidas no perigo e, o que para a mulher custa ainda mais, estóicas na dor. Conta o cronista de certa viúva portuguesa, que recebeu nos braços o filho moribundo, horrivelmente ferido no ventre. “Ó mãe!” – pedia ele “veja, eu vos peço primeiro a confissão que vossas lágrimas!” – e ela, “com face sossegada e olhos enxutos”, respondeu: “Filho, encomenda-te a Deus, e sê esforçado no morrer e com isso me consolarás.”. E quando o pobre rapaz, depois da confissão, passou desta vida, ela ficou ainda tão calma e corajosa “que os que a vinham consolar, em vez de lhe darem consolação, a recebiam dela”.
Esta atribulada mãe, no dia seguinte, perdeu o segundo filho no baluarte chamado dos Rumes, que, por traição, foi tomado pelo inimigo. Apesar de tão rude e imediato golpe, ela aguentou serena e silenciosa – exemplo heróico e cristão, comenta Lopo de Sousa.
Tão são as heroínas bem femininas, esquecidas de si mesmas na sua missão de curar e consolar. Outras raparigas valentes havia lá que não se contentavam em exercer o papel suave de auxiliar não-combatente. Certa Catarina Moreira, por exemplo, vestiu-se de homem, pegou numa chuça e, junta com outra companheira de armas, correu ao muro aquando de um rebate, bradando para os homens que se esforçassem, pois elas estavam ali para os ajudar! Catarina levou uma espingardada no ombro, cujo projéctil lhe saiu pelas costas. Nem assim houve quem a fizesse descer do muro. Estava boa ainda para matar um par de rumes – proclamava.
Da mesma brava têmpera era outra mulher casada, a quem disseram da tomada de dois turcos. Que era feito deles? – perguntou toda sôfrega, a um homem que passava. Não sabia, a bem dizer – foi a resposta – parecia-lhe porém que o capitão já os mandara soltar.
O quê? Soltar? E, inflamada de cólera, a mulher irrompeu pela casa, onde supunha que os cativos estivessem. Aí, viu sentado, a descansar, um certo Francisco de Gouveia, todo desfigurado e queimado de rosto, pés e mãos, a ponto de ser irreconhecível. Ela julgou que fosse o turco “O perro! E há de te soltar?” – bradou, e levantando a gamela que trazia nas mãos, ia quebrar a cabeça do pobre homem. Pulando de susto, ele conseguiu esquivar-se e deitou a fugir, perseguido pela fera bravia. Debalde gritava que, por amor de Deus o deixasse, que na outra casa estavam os turcos. Mas ela não queria acreditar: “Vede o perro como fala português espevitado! Pois não vos há-de valer, que vos hei-de fender esta gamela nessa cabeça!”. Foi preciso a intervenção de dois homens, para salvar Francisco de Gouveia.
Anjos de piedade, ou fúrias desenfreadas, o certo é que nenhuma mulher de Dio teve medo. E as que não enfileiraram nas linhas combatentes, nem prestavam serviços auxiliares, iam e vinham sossegadamente na sua lide quotidiana.
Conta Francisco do Couto que dos baluartes abaixo existiam dois caminhos, por onde um homem a cavalo podia passar. O capitão proibiu porém que ninguém aí subisse, para não ser visto do inimigo em baixo, mas desta proibição não quis saber “huma mulher muito gorda e velha que era molher do barbeiro d´Antonio da Silveira”. Esta subia e descia “com chapins nos pés” da fortaleza, cada vez que desejava, e assim faziam as outras mulheres da praça. Não se importavam nem do inimigo, nem do capitão – eram assim, as mulheres de Dio!
Isto sucedeu no primeiro cerco – façanhas que se repetiram oito anos depois, no tempo do capitão D. João de Mascarenhas. Não sei se as mulheres eram ainda as mesmas – algumas seriam talvez. O certo é que apareceram sempre mais heroínas.
Devemos confessar que, se o português de quinhentos fez figura de epopeia, a portuguesa nunca lhe ficou atrás.
Conta Francisco do Couto que dos baluartes abaixo existiam dois caminhos, por onde um homem a cavalo podia passar. O capitão proibiu porém que ninguém aí subisse, para não ser visto do inimigo em baixo, mas desta proibição não quis saber “huma mulher muito gorda e velha que era molher do barbeiro d´Antonio da Silveira”. Esta subia e descia “com chapins nos pés” da fortaleza, cada vez que desejava, e assim faziam as outras mulheres da praça. Não se importavam nem do inimigo, nem do capitão – eram assim, as mulheres de Dio!
Isto sucedeu no primeiro cerco – façanhas que se repetiram oito anos depois, no tempo do capitão D. João de Mascarenhas. Não sei se as mulheres eram ainda as mesmas – algumas seriam talvez. O certo é que apareceram sempre mais heroínas.
Devemos confessar que, se o português de quinhentos fez figura de epopeia, a portuguesa nunca lhe ficou atrás.