D. João II, o Príncipe Perfeito

D. João II - Lisboa, 3 de Março de 1455 – Alvor, 25 de Outubro de 1495 – texto retirado do livro "D. João II", de Elaine Sanceau:
(...) o Príncipe teve uma adolescência saudável. Os contemporâneos pintaram-no um rapaz entroncado, de rosto corado, face comprida, nariz longo e mãos brancas e compridas, olhos negros vivos, que se tornavam vermelhos quando se zangava, boca bem feita, dentes brancos e cabelo corredio e castanho.
De pernas altas, atlético e elegante, amava a caça, a altanaria e outros desportos. Cavalgava admiravelmente, nadava como um peixe, sabia lutar e correr, a sua esgrima era magnífica, salientava-se em todos os jogos, dançava perfeitamente, e não desprezava as boas roupagens.
O seu apetite era excelente, mas não bebia vinho. Sob outros aspectos não compartilhava da austeridade da família. O pai de D. Afonso e os seus tios tinham sido educados no idealismo pela rainha D. Filipa de Lencastre, sua mãe, e no exemplo do seu herói, Nuno Álvares; o próprio D. Afonso tivera um amor de infância a prendê-lo; mas nenhuma dessas influências benignas pairou sobre a mocidade do seu filho. Com alguns companheiros, o Príncipe dava-se às aventuras nocturnas através das ruas escuras de Lisboa; e quando um bando de desordeiros os assaltava, ele desembainhava a espada e retribuía na mesma moeda.
Esta actividade física conjugava-se com uma inteligência penetrante e inquieta. D. João não era um erudito contemplativo como seus avós. Educado por humanistas, numa Corte onde havia uma livraria bem fornecida, o Príncipe adquiriu instrução sem dar por isso: falava e escrevia latim, gostava da poesia e apreciava a arte; as ciências conhecidas do seu tempo eram rapidamente absorvidas por ele; o seu interesse ia da Matemática à Medicina, à Geografia, à Astronomia, à Cartografia, à Artilharia, e à Arquitectura naval. O seu espírito curioso de tudo tirava proveito, embora não tivesse o temperamento do que passa longas horas curvado sobre os livros. Estes eram interessantes, mas o mundo que o rodeava mais interessante ainda – este fascinante mundo em transição do sec. XV, em que caíam barreiras e alargavam horizontes. Era um mundo em que todos os dias surgiam do azul novas ilhas, em que um continente quase desconhecido, de riquezas inenarráveis e de monstros estranhos, lentamente se revelava, ao mesmo tempo que o grande Oceano , desde tempos antigos julgado abismo infinito, abandonava os seus segredos um por um e se tornava a estrada por onde seguia uma nação. E sobre esta nação reinaria o Príncipe um dia, e o seu império, que ia crescendo, seria para ele. D. João tinha apenas cinco anos quando D. Henrique morreu, mas nem D. Fernando, o filho adoptivo do Infante, nem o rei D. Afonso, que crescera a seu lado, tinham compreendido todo o âmbito do sonho de D. Henrique, como o compreendera o jovem Príncipe. Para D. Afonso, a cruzada marroquina era um fim em si mesmo. Seu filho via nela apenas um trampolim, e o
fim devia ser a Índia.
(…)
D. João II reinou catorze anos, menos vinte e nove do que o período do reinado do pai, e vinte anos mais curto do que o do seu sucessor. Todavia, a sua passagem pelo trono, embora relativamente breve, teve importância transcendente na história do mundo. O reinado de D. João corrigiu os erros que vinham de trás e preparou tudo para a futura era de glória.
Encontrou um reino depauperado pela guerra, um trono exausto, uma oligarquia egoísta e indisciplinada a propagar-se e a engordar com o melhor da terra, uma Coroa que perdera muito da sua autoridade e prestígio. Mais do que isso, achou enfraquecida uma grande empresa – a Demanda de D: Henrique, o Navegador, a degenerar em simples negócio
particular.
Apenas em alguns anos, D. João transformara tudo isto. Deixou um reino próspero e pacífico, um tesouro bem recheado, uma nobreza leal e preparada para obedecer até à morte, um trono respeitado no interior e no estrangeiro. E, mais importante do que tudo isto, no seu reinado fora encontrada a resposta ao grande problema geográfico dos séculos. O caminho marítimo para o Oriente, que outrora parecera um sonho vão de aventureiros e teóricos, tornara-se uma proposição viável.
Esta solução deveu-se a D. João. Seu tio-avô, o grande Infante, não poderia ter desejado um sucessor tão completo para a sua gigantesca missão. Assim como o Infante não se deixara desanimar por todos os desertos brancos da costa do Sáara, assim D. João perseverou ao longo das tristes costas entre o Congo e o Cabo –terras que, segundo as ideias correntes no sec XV, não tinham qualquer valor comercial. Duarte Pacheco declara que a costa descoberta no reinado de D. João não tinha “cousa sobre que se homem podesse alegrar”. O rei tirou dela pouca coisa axcepto despesa…e a abertura do caminho marítimo para a Índia! Assim, acrescenta Pacheco, podemos saber que D. João não trabalhara por sórdidos motivos de lucro material, mas “por sua gloria e magnificiencia e por saber terra nova incógnita há todalas gerasões”. E com que perseverança atingiu a meta! Nem perturbações políticas no reino, nem preocupações particulares, nem má saúde o desviaram jamais do seu propósito firme.
Desde 1474, quando o Príncipe de dezanove anos se encarregara pela primeira vez dos negócios da Guiné, até 1495 em que D. João II morreu, a costa da África fora descoberta desde a Costa do Ouro até além do Cabo da Boa Esperança; fundara-se o forte e a feitoria da Mina; organizara-se o trabalho social e missionário no Congo; e colonizara-se e cultivara-se a ilha de S. Tomé. Pêro da Covilhã seguira para a Índia por terra, e Bartolomeu dias dobrara o Cabo; a ciência da navegação e a cartografia tinham dado grandes passos em frente, e a geografia enriquecera-se com a exploração do interior do continente africano. Duarte Pacheco, José Vizinho e outros tinham explorado os rios da Guiné e da Serra Leoa e levantado cartas da costa; p “Regimento do Astrolábio”, com tábuas de declinação e latitudes, já acompanhava os pilotos no mar, e o regime dos ventos do Atlântico sul estudara-se tão cuidadosamente, que quando Vasco da Gama partiu pôde traçar a sua rota sem errar, seguindo o meridiano pelo meio do Oceano.
Tudo isto foi obra de D. João, mas não era isso o que o povo chorava. Chorava-o, porque ele fora o rei que sempre lhe defendera os interesses, que sempre se interpusera entre ele e os seus inimigos, fossem eles castelhanos, grandes senhores ou corsários, ou simplesmente especuladores do “mercado negro”; que não fizera promessa que não cumprisse, e distribuía a justiça sem se importar com a posição social do transgressor. Por isso, quando começaram a correr boatos da sua morte edificante, ele tornou-se, na sua memória, “o santo Rei” e esperava-se que houvesse milagres no seu túmulo.
Não foi o povo quem, pela primeira vez, lhe chamou o “Príncipe Perfeito”. Por estranho que pareça, esse título veio de Castela, mais de um século depois. Lope de Veja, impressionado pelas brilhantes qualidades de D. João, enquadrou-as num auto a que chamou El Principe Perfecto. O nome pegou e durou até hoje como o que descreve bem a eficácia de D. João no seu trabalho. Há quem veja nele o protótipo do Príncipe de Maquiavel, mas o aspecto maquiavélico de D. João era o que ele tinha de comum com a maior parte dos reis do século XV.
Para os grandes exilados políticos do reinado de D. João, o Rei era o Tirano e o Vingador; mas a figura mais brilhante de todos eles, o Cardeal, pôde ainda admirar o homem, por receio do qual emigrara. Quando lhe chegou a Roma a notícia da morte de D. João, o favorito de D. Afonso comentou:
- “Morreu o melhor rei do mundo, filho do melhor dos homens!”.
A rainha Isabel de Castela resumira a impressão geral, de modo ainda mais sucinto, dizendo:
-Morreu o HOMEM!
(...) o Príncipe teve uma adolescência saudável. Os contemporâneos pintaram-no um rapaz entroncado, de rosto corado, face comprida, nariz longo e mãos brancas e compridas, olhos negros vivos, que se tornavam vermelhos quando se zangava, boca bem feita, dentes brancos e cabelo corredio e castanho.
De pernas altas, atlético e elegante, amava a caça, a altanaria e outros desportos. Cavalgava admiravelmente, nadava como um peixe, sabia lutar e correr, a sua esgrima era magnífica, salientava-se em todos os jogos, dançava perfeitamente, e não desprezava as boas roupagens.
O seu apetite era excelente, mas não bebia vinho. Sob outros aspectos não compartilhava da austeridade da família. O pai de D. Afonso e os seus tios tinham sido educados no idealismo pela rainha D. Filipa de Lencastre, sua mãe, e no exemplo do seu herói, Nuno Álvares; o próprio D. Afonso tivera um amor de infância a prendê-lo; mas nenhuma dessas influências benignas pairou sobre a mocidade do seu filho. Com alguns companheiros, o Príncipe dava-se às aventuras nocturnas através das ruas escuras de Lisboa; e quando um bando de desordeiros os assaltava, ele desembainhava a espada e retribuía na mesma moeda.
Esta actividade física conjugava-se com uma inteligência penetrante e inquieta. D. João não era um erudito contemplativo como seus avós. Educado por humanistas, numa Corte onde havia uma livraria bem fornecida, o Príncipe adquiriu instrução sem dar por isso: falava e escrevia latim, gostava da poesia e apreciava a arte; as ciências conhecidas do seu tempo eram rapidamente absorvidas por ele; o seu interesse ia da Matemática à Medicina, à Geografia, à Astronomia, à Cartografia, à Artilharia, e à Arquitectura naval. O seu espírito curioso de tudo tirava proveito, embora não tivesse o temperamento do que passa longas horas curvado sobre os livros. Estes eram interessantes, mas o mundo que o rodeava mais interessante ainda – este fascinante mundo em transição do sec. XV, em que caíam barreiras e alargavam horizontes. Era um mundo em que todos os dias surgiam do azul novas ilhas, em que um continente quase desconhecido, de riquezas inenarráveis e de monstros estranhos, lentamente se revelava, ao mesmo tempo que o grande Oceano , desde tempos antigos julgado abismo infinito, abandonava os seus segredos um por um e se tornava a estrada por onde seguia uma nação. E sobre esta nação reinaria o Príncipe um dia, e o seu império, que ia crescendo, seria para ele. D. João tinha apenas cinco anos quando D. Henrique morreu, mas nem D. Fernando, o filho adoptivo do Infante, nem o rei D. Afonso, que crescera a seu lado, tinham compreendido todo o âmbito do sonho de D. Henrique, como o compreendera o jovem Príncipe. Para D. Afonso, a cruzada marroquina era um fim em si mesmo. Seu filho via nela apenas um trampolim, e o
fim devia ser a Índia.
(…)
D. João II reinou catorze anos, menos vinte e nove do que o período do reinado do pai, e vinte anos mais curto do que o do seu sucessor. Todavia, a sua passagem pelo trono, embora relativamente breve, teve importância transcendente na história do mundo. O reinado de D. João corrigiu os erros que vinham de trás e preparou tudo para a futura era de glória.
Encontrou um reino depauperado pela guerra, um trono exausto, uma oligarquia egoísta e indisciplinada a propagar-se e a engordar com o melhor da terra, uma Coroa que perdera muito da sua autoridade e prestígio. Mais do que isso, achou enfraquecida uma grande empresa – a Demanda de D: Henrique, o Navegador, a degenerar em simples negócio
particular.
Apenas em alguns anos, D. João transformara tudo isto. Deixou um reino próspero e pacífico, um tesouro bem recheado, uma nobreza leal e preparada para obedecer até à morte, um trono respeitado no interior e no estrangeiro. E, mais importante do que tudo isto, no seu reinado fora encontrada a resposta ao grande problema geográfico dos séculos. O caminho marítimo para o Oriente, que outrora parecera um sonho vão de aventureiros e teóricos, tornara-se uma proposição viável.
Esta solução deveu-se a D. João. Seu tio-avô, o grande Infante, não poderia ter desejado um sucessor tão completo para a sua gigantesca missão. Assim como o Infante não se deixara desanimar por todos os desertos brancos da costa do Sáara, assim D. João perseverou ao longo das tristes costas entre o Congo e o Cabo –terras que, segundo as ideias correntes no sec XV, não tinham qualquer valor comercial. Duarte Pacheco declara que a costa descoberta no reinado de D. João não tinha “cousa sobre que se homem podesse alegrar”. O rei tirou dela pouca coisa axcepto despesa…e a abertura do caminho marítimo para a Índia! Assim, acrescenta Pacheco, podemos saber que D. João não trabalhara por sórdidos motivos de lucro material, mas “por sua gloria e magnificiencia e por saber terra nova incógnita há todalas gerasões”. E com que perseverança atingiu a meta! Nem perturbações políticas no reino, nem preocupações particulares, nem má saúde o desviaram jamais do seu propósito firme.
Desde 1474, quando o Príncipe de dezanove anos se encarregara pela primeira vez dos negócios da Guiné, até 1495 em que D. João II morreu, a costa da África fora descoberta desde a Costa do Ouro até além do Cabo da Boa Esperança; fundara-se o forte e a feitoria da Mina; organizara-se o trabalho social e missionário no Congo; e colonizara-se e cultivara-se a ilha de S. Tomé. Pêro da Covilhã seguira para a Índia por terra, e Bartolomeu dias dobrara o Cabo; a ciência da navegação e a cartografia tinham dado grandes passos em frente, e a geografia enriquecera-se com a exploração do interior do continente africano. Duarte Pacheco, José Vizinho e outros tinham explorado os rios da Guiné e da Serra Leoa e levantado cartas da costa; p “Regimento do Astrolábio”, com tábuas de declinação e latitudes, já acompanhava os pilotos no mar, e o regime dos ventos do Atlântico sul estudara-se tão cuidadosamente, que quando Vasco da Gama partiu pôde traçar a sua rota sem errar, seguindo o meridiano pelo meio do Oceano.
Tudo isto foi obra de D. João, mas não era isso o que o povo chorava. Chorava-o, porque ele fora o rei que sempre lhe defendera os interesses, que sempre se interpusera entre ele e os seus inimigos, fossem eles castelhanos, grandes senhores ou corsários, ou simplesmente especuladores do “mercado negro”; que não fizera promessa que não cumprisse, e distribuía a justiça sem se importar com a posição social do transgressor. Por isso, quando começaram a correr boatos da sua morte edificante, ele tornou-se, na sua memória, “o santo Rei” e esperava-se que houvesse milagres no seu túmulo.
Não foi o povo quem, pela primeira vez, lhe chamou o “Príncipe Perfeito”. Por estranho que pareça, esse título veio de Castela, mais de um século depois. Lope de Veja, impressionado pelas brilhantes qualidades de D. João, enquadrou-as num auto a que chamou El Principe Perfecto. O nome pegou e durou até hoje como o que descreve bem a eficácia de D. João no seu trabalho. Há quem veja nele o protótipo do Príncipe de Maquiavel, mas o aspecto maquiavélico de D. João era o que ele tinha de comum com a maior parte dos reis do século XV.
Para os grandes exilados políticos do reinado de D. João, o Rei era o Tirano e o Vingador; mas a figura mais brilhante de todos eles, o Cardeal, pôde ainda admirar o homem, por receio do qual emigrara. Quando lhe chegou a Roma a notícia da morte de D. João, o favorito de D. Afonso comentou:
- “Morreu o melhor rei do mundo, filho do melhor dos homens!”.
A rainha Isabel de Castela resumira a impressão geral, de modo ainda mais sucinto, dizendo:
-Morreu o HOMEM!