3. Heroínas de Dio – Recortes de Pequena história, Elaine Sancea
Foi em fins de Setembro de 1538, que a formidável armada do turco Suleimão Paxá apareceu ao largo de Dio. Eram perto de cem naus, todas flamejantes de bandeiras vermelhas e tripuladas por homens também vestidos de vermelho. Chegaram a três léguas da fortaleza, e o vento acalmou. Ancoraram, então, para no dia seguinte abrir violento tiroteio contra a praça portuguesa. O perigo era grande para o punhado de bravos que havia já dois meses se defendia do assalto das forças terrestres do Gujerate. A cidade de Dio estava ocupada pelo inimigo, e a população portuguesa que lá vivia, tivera que se acolher à fortaleza.
O capitão António da Silveira, herói de altas façanhas na Índia, e os valentes que combatiam sob o seu comando estavam resolvidos a defender Dio até à morte. Nem rendição, nem capitulação – morreriam todos como homens! Mas que seria então das mulheres que estavam com eles em Dio? Acontecendo o pior – perdendo-se a fortaleza – haviam elas de ficar como despojo nas mãos do bárbaro muçulmano?
A minha nunca! – jurou Manuel de Vasconcelos, brioso cavaleiro madeirense e juiz da alfândega de Dio. O capitão mandava alguns doentes para Goa numa fusta; pedia que levassem nela também sua mulher, a nova e bonita Isabel da Veiga.
Para isto não estava porém D. Isabel. Como? Iria ela fugir deixando o marido em perigo? Por nada deste mundo consentia! Protestou, fez-se suplicante, carinhosa: então já não gostava dela, de contrário não a mandava embora! Porque estava descontente com ela? Dissesse-lhe a sua culpa – emendar-se-ia. Sempre não merecia o castigo de ser afastada da sua companhia! Ainda mais ficando ele no cerco…Ela não tinha medo, não. Junto dele nunca temia nada. Pelo contrário, era um gosto enfrentar o perigo ao lado dele, ao passo que, estando longe, morreria de aflição. A filhinha deles – essa, sim – podia e devia mandá-la para o avô, em Goa. Estando a pequena em segurança, ele e ela ficavam livres de preocupações. Que ela, sua mulher, fosse, isso não e não! Tanto falou, tanto teimou, que Manuel de Vasconcelos despachou a menina para Goa, deixando ficar a mãe, com grande contentamento desta.
Isabel iria mostrar o que valem as mulheres! Foi ter com a amiga Ana Fernandes, mulher do físico Fernão Lourenço: vamos fazer por ajudar! Depois foram chamar as companheiras. Os homens trabalhavam dia e noite para consertar os muros da fortaleza. Elas dariam uma mão. Sob a chefia de Ana e Isabel acarretaram terra e pedras, que levavam nas alcofas ou outras vasilhas para o muro. Assim os homens nunca tiveram de deixá-lo, para buscar o material.
O capitão António da Silveira, herói de altas façanhas na Índia, e os valentes que combatiam sob o seu comando estavam resolvidos a defender Dio até à morte. Nem rendição, nem capitulação – morreriam todos como homens! Mas que seria então das mulheres que estavam com eles em Dio? Acontecendo o pior – perdendo-se a fortaleza – haviam elas de ficar como despojo nas mãos do bárbaro muçulmano?
A minha nunca! – jurou Manuel de Vasconcelos, brioso cavaleiro madeirense e juiz da alfândega de Dio. O capitão mandava alguns doentes para Goa numa fusta; pedia que levassem nela também sua mulher, a nova e bonita Isabel da Veiga.
Para isto não estava porém D. Isabel. Como? Iria ela fugir deixando o marido em perigo? Por nada deste mundo consentia! Protestou, fez-se suplicante, carinhosa: então já não gostava dela, de contrário não a mandava embora! Porque estava descontente com ela? Dissesse-lhe a sua culpa – emendar-se-ia. Sempre não merecia o castigo de ser afastada da sua companhia! Ainda mais ficando ele no cerco…Ela não tinha medo, não. Junto dele nunca temia nada. Pelo contrário, era um gosto enfrentar o perigo ao lado dele, ao passo que, estando longe, morreria de aflição. A filhinha deles – essa, sim – podia e devia mandá-la para o avô, em Goa. Estando a pequena em segurança, ele e ela ficavam livres de preocupações. Que ela, sua mulher, fosse, isso não e não! Tanto falou, tanto teimou, que Manuel de Vasconcelos despachou a menina para Goa, deixando ficar a mãe, com grande contentamento desta.
Isabel iria mostrar o que valem as mulheres! Foi ter com a amiga Ana Fernandes, mulher do físico Fernão Lourenço: vamos fazer por ajudar! Depois foram chamar as companheiras. Os homens trabalhavam dia e noite para consertar os muros da fortaleza. Elas dariam uma mão. Sob a chefia de Ana e Isabel acarretaram terra e pedras, que levavam nas alcofas ou outras vasilhas para o muro. Assim os homens nunca tiveram de deixá-lo, para buscar o material.
Não se contentavam elas porém só com esta ajuda. Faziam tudo o que lhes vinha à mão. Cuidavam dos enfermos e atavam as feridas, juntando nas suas casas trapos e estopas para pensos e ligaduras, preparando boas camas sempre prontas para quem precisasse. Sem medi algum, passavam entre os tiros da artilharia inimiga esquecidas de tudo menos da sua missão útil ou piedosa.
Ana Fernandes, sendo a mais velha, era como mãe de todos. Apoiada num cajado, com as contas nas mãos, percorria de noite a muralha, levantando o moral com palavras animosas, e o físico com os gostosos manjares da sua cozinha. Sem ela ou as outras mulheres, confessa Lopo de Sousa Coutinho, o trabalho dos homens neste cerco teria sido mil vezes pior.
Elas mostraram-se heróicas até ao fim – destemidas no perigo e, o que para a mulher custa ainda mais, estóicas na dor. Conta o cronista de certa viúva portuguesa, que recebeu nos braços o filho moribundo, horrivelmente ferido no ventre. “Ó mãe!” – pedia ele “veja, eu vos peço primeiro a confissão que vossas lágrimas!” – e ela, “com face sossegada e olhos enxutos”, respondeu: “Filho, encomenda-te a Deus, e sê esforçado no morrer e com isso me consolarás.”. E quando o pobre rapaz, depois da confissão, passou desta vida, ela ficou ainda tão calma e corajosa “que os que a vinham consolar, em vez de lhe darem consolação, a recebiam dela”.
Esta atribulada mãe, no dia seguinte, perdeu o segundo filho no baluarte chamado dos Rumes, que, por traição, foi tomado pelo inimigo. Apesar de tão rude e imediato golpe, ela aguentou serena e silenciosa – exemplo heróico e cristão, comenta Lopo de Sousa.
Tão são as heroínas bem femininas, esquecidas de si mesmas na sua missão de curar e consolar. Outras raparigas valentes havia lá que não se contentavam em exercer o papel suave de auxiliar não-combatente. Certa Catarina Moreira, por exemplo, vestiu-se de homem, pegou numa chuça e, junta com outra companheira de armas, correu ao muro aquando de um rebate, bradando para os homens que se esforçassem, pois elas estavam ali para os ajudar! Catarina levou uma espingardada no ombro, cujo projéctil lhe saiu pelas costas. Nem assim houve quem a fizesse descer do muro. Estava boa ainda para matar um par de rumes – proclamava.
Da mesma brava têmpera era outra mulher casada, a quem disseram da tomada de dois turcos. Que era feito deles? – perguntou toda sôfrega, a um homem que passava. Não sabia, a bem dizer – foi a resposta – parecia-lhe porém que o capitão já os mandara soltar.
O quê? Soltar? E, inflamada de cólera, a mulher irrompeu pela casa, onde supunha que os cativos estivessem. Aí, viu sentado, a descansar, um certo Francisco de Gouveia, todo desfigurado e queimado de rosto, pés e mãos, a ponto de ser irreconhecível. Ela julgou que fosse o turco “O perro! E há de te soltar?” – bradou, e levantando a gamela que trazia nas mãos, ia quebrar a cabeça do pobre homem. Pulando de susto, ele conseguiu esquivar-se e deitou a fugir, perseguido pela fera bravia. Debalde gritava que, por amor de Deus o deixasse, que na outra casa estavam os turcos. Mas ela não queria acreditar: “Vede o perro como fala português espevitado! Pois não vos há-de valer, que vos hei-de fender esta gamela nessa cabeça!”. Foi preciso a intervenção de dois homens, para salvar Francisco de Gouveia.
Ana Fernandes, sendo a mais velha, era como mãe de todos. Apoiada num cajado, com as contas nas mãos, percorria de noite a muralha, levantando o moral com palavras animosas, e o físico com os gostosos manjares da sua cozinha. Sem ela ou as outras mulheres, confessa Lopo de Sousa Coutinho, o trabalho dos homens neste cerco teria sido mil vezes pior.
Elas mostraram-se heróicas até ao fim – destemidas no perigo e, o que para a mulher custa ainda mais, estóicas na dor. Conta o cronista de certa viúva portuguesa, que recebeu nos braços o filho moribundo, horrivelmente ferido no ventre. “Ó mãe!” – pedia ele “veja, eu vos peço primeiro a confissão que vossas lágrimas!” – e ela, “com face sossegada e olhos enxutos”, respondeu: “Filho, encomenda-te a Deus, e sê esforçado no morrer e com isso me consolarás.”. E quando o pobre rapaz, depois da confissão, passou desta vida, ela ficou ainda tão calma e corajosa “que os que a vinham consolar, em vez de lhe darem consolação, a recebiam dela”.
Esta atribulada mãe, no dia seguinte, perdeu o segundo filho no baluarte chamado dos Rumes, que, por traição, foi tomado pelo inimigo. Apesar de tão rude e imediato golpe, ela aguentou serena e silenciosa – exemplo heróico e cristão, comenta Lopo de Sousa.
Tão são as heroínas bem femininas, esquecidas de si mesmas na sua missão de curar e consolar. Outras raparigas valentes havia lá que não se contentavam em exercer o papel suave de auxiliar não-combatente. Certa Catarina Moreira, por exemplo, vestiu-se de homem, pegou numa chuça e, junta com outra companheira de armas, correu ao muro aquando de um rebate, bradando para os homens que se esforçassem, pois elas estavam ali para os ajudar! Catarina levou uma espingardada no ombro, cujo projéctil lhe saiu pelas costas. Nem assim houve quem a fizesse descer do muro. Estava boa ainda para matar um par de rumes – proclamava.
Da mesma brava têmpera era outra mulher casada, a quem disseram da tomada de dois turcos. Que era feito deles? – perguntou toda sôfrega, a um homem que passava. Não sabia, a bem dizer – foi a resposta – parecia-lhe porém que o capitão já os mandara soltar.
O quê? Soltar? E, inflamada de cólera, a mulher irrompeu pela casa, onde supunha que os cativos estivessem. Aí, viu sentado, a descansar, um certo Francisco de Gouveia, todo desfigurado e queimado de rosto, pés e mãos, a ponto de ser irreconhecível. Ela julgou que fosse o turco “O perro! E há de te soltar?” – bradou, e levantando a gamela que trazia nas mãos, ia quebrar a cabeça do pobre homem. Pulando de susto, ele conseguiu esquivar-se e deitou a fugir, perseguido pela fera bravia. Debalde gritava que, por amor de Deus o deixasse, que na outra casa estavam os turcos. Mas ela não queria acreditar: “Vede o perro como fala português espevitado! Pois não vos há-de valer, que vos hei-de fender esta gamela nessa cabeça!”. Foi preciso a intervenção de dois homens, para salvar Francisco de Gouveia.
Anjos de piedade, ou fúrias desenfreadas, o certo é que nenhuma mulher de Dio teve medo. E as que não enfileiraram nas linhas combatentes, nem prestavam serviços auxiliares, iam e vinham sossegadamente na sua lide quotidiana.
Conta Francisco do Couto que dos baluartes abaixo existiam dois caminhos, por onde um homem a cavalo podia passar. O capitão proibiu porém que ninguém aí subisse, para não ser visto do inimigo em baixo, mas desta proibição não quis saber “huma mulher muito gorda e velha que era molher do barbeiro d´Antonio da Silveira”. Esta subia e descia “com chapins nos pés” da fortaleza, cada vez que desejava, e assim faziam as outras mulheres da praça. Não se importavam nem do inimigo, nem do capitão – eram assim, as mulheres de Dio!
Isto sucedeu no primeiro cerco – façanhas que se repetiram oito anos depois, no tempo do capitão D. João de Mascarenhas. Não sei se as mulheres eram ainda as mesmas – algumas seriam talvez. O certo é que apareceram sempre mais heroínas.
Devemos confessar que, se o português de quinhentos fez figura de epopeia, a portuguesa nunca lhe ficou atrás.
Conta Francisco do Couto que dos baluartes abaixo existiam dois caminhos, por onde um homem a cavalo podia passar. O capitão proibiu porém que ninguém aí subisse, para não ser visto do inimigo em baixo, mas desta proibição não quis saber “huma mulher muito gorda e velha que era molher do barbeiro d´Antonio da Silveira”. Esta subia e descia “com chapins nos pés” da fortaleza, cada vez que desejava, e assim faziam as outras mulheres da praça. Não se importavam nem do inimigo, nem do capitão – eram assim, as mulheres de Dio!
Isto sucedeu no primeiro cerco – façanhas que se repetiram oito anos depois, no tempo do capitão D. João de Mascarenhas. Não sei se as mulheres eram ainda as mesmas – algumas seriam talvez. O certo é que apareceram sempre mais heroínas.
Devemos confessar que, se o português de quinhentos fez figura de epopeia, a portuguesa nunca lhe ficou atrás.