1. Os filhos do feitor de Calecut – Recortes de Pequena história, Elaine Sanceau
Na luzida expedição enviada à Índia, em 1500, com dupla missão diplomática e comercial, seguia o rico e influente Aires Correia. Figura de facetas várias: mercador, afirmam alguns, armador de naus, acrescentam outros (não foi a ele que o rei comprara a embarcação que levava mantimentos para a viagem de Vasco da Gama?) – Aires Correia, apesar das evidentes preocupações mercantis, era fidalgo de boa estirpe. Na armada de Pedro Álvares Cabral, ia como feitor nomeado pelo rei. Partia para um mundo de incertezas. Esta viagem era a segunda que se fazia à Índia, baseada nas informações trazidas por Vasco da Gama no ano anterior. Sobre os perigos da empresa, não havia dúvidas, e aos riscos dos mares, ainda pouco conhecidos, acrescentavam-se os das dúbias relações com o Samorim, já malquistado com os Portugueses pelas intrigas dos mercadores muçulmanos.
Tudo contingente e incerto, já se vê, mas esta geração era optimista. Haviam as coisas de correr como eles queriam! Tanto isto parecia a Aires Correia, que não somente aceitou a incumbência de feitor de Calecut, para permanecer esta terra mal conhecida depois da partida da armada, mas ainda levou consigo dois filhos menores que muito amava: os pequenos Aires e António, nenhum dos quais tinha mais de onze anos.
E lá foram os rapazinhos para a grande viagem. Para eles deve ter sido uma aventura maravilhosa. Puderam assistir a essa estranha e bela semana de Vera Crus, tão bem contada por Pêro Vaz de Caminha, colega de seu pai. Viram também as exóticas cidades de Moçambique e Quíloa; desembarcaram certamente em Melinde, onde os portugueses tiveram recepção festiva, e é de presumir que as famosas laranjas – muito mais doces que as de Portugal – não fossem o que menos agradou aos meninos.
Chegados a Calecut, na praia orlada de palmeiras, puderam admirar o «cerame» do Samorim – linda casa «feita sobre esteos, oitavada e toda aberta com varandas e corucheos, e galantarias, de maravilhosos lavores e marchetes de marfins, a lugares drapeada de prata e ouro».
Tudo contingente e incerto, já se vê, mas esta geração era optimista. Haviam as coisas de correr como eles queriam! Tanto isto parecia a Aires Correia, que não somente aceitou a incumbência de feitor de Calecut, para permanecer esta terra mal conhecida depois da partida da armada, mas ainda levou consigo dois filhos menores que muito amava: os pequenos Aires e António, nenhum dos quais tinha mais de onze anos.
E lá foram os rapazinhos para a grande viagem. Para eles deve ter sido uma aventura maravilhosa. Puderam assistir a essa estranha e bela semana de Vera Crus, tão bem contada por Pêro Vaz de Caminha, colega de seu pai. Viram também as exóticas cidades de Moçambique e Quíloa; desembarcaram certamente em Melinde, onde os portugueses tiveram recepção festiva, e é de presumir que as famosas laranjas – muito mais doces que as de Portugal – não fossem o que menos agradou aos meninos.
Chegados a Calecut, na praia orlada de palmeiras, puderam admirar o «cerame» do Samorim – linda casa «feita sobre esteos, oitavada e toda aberta com varandas e corucheos, e galantarias, de maravilhosos lavores e marchetes de marfins, a lugares drapeada de prata e ouro».
Era natural que os pequenos ficassem a bordo da nau, enquanto iam e vinham mensageiros entre os portugueses e o Samorim. Este, lisonjeado por ver um grande Rei dos confins da terra procurar a sua amizade, mas simultaneamente cheio de desconfiança, instilada pelos mercadores do mar Roxo receosos pelo monopólio do comércio da pimenta, não sabia o que havia de determinar.
Afinal as coisas começaram a correr bem. O Samorim aceitava a nova aliança e concedia aos portugueses feitoria em terra. Então, à ordem do capitão, Aires Correia desembarcou com 60 companheiros, acompanhados dos dois filhinhos, e levando mercadorias para trocar e vender. A casa oferecida era bela e espaçosa no centro de um grande jardim. Com a bandeira portuguesa a flutuar em cima do edifício, os portugueses sentiram-se bem. Dois mercadores, o árabe Coje Cemeceri, e Coje Bequi nascido na terra, foram destacados pelo Samorim para industriar os estrangeiros, que assim iam e vinham pela cidade, confiantes e satisfeitos.
Satisfeitos também estavam os meninos do feitor, pois depressa arranjaram um amiguinho. Coje Bequi trazia sempre com ele um filho seu, da idade dos pequenos portugueses. Não sei se estes tinham algum conhecimento da língua árabe – que seu pai, aliás, falava correntemente – mas entre crianças, o problema linguístico nunca impediu o bom entendimento. Aires e António brincavam com o mourinho, cujo pai simpatizou com eles, pois eram bonitos e educadinhos. Coje Bequi levava-os amiúde para sua casa, e lá ficavam às vezes dias seguidos com as mulheres e crianças do harém. Noutras ocasiões o feitor ia ao paço do Samorim, e fazia-se acompanhar pelos filhos. O soberano indiano folgava muito de ver os meninos tão branquinhos e tão formosos, e mimoseava-os com brinquedos e bugigangas.
Certamente eram eles os únicos a viver felizes e despreocupados, no meio das intrigas e malquerenças, que os inimigos dos portugueses não tardavam a tecer. Os magnates do mar Vermelho, fulos perante a ameaça de concorrência no comércio da pimenta, até então seu exclusivo, enchiam os ouvidos do volúvel Samorim com acusações e calúnias, respeitantes aos recém-vindos. Aires Correia começou a ver as coisas mal paradas, pois sonegavam-lhe a carga para as naus. De parte a parte houve queixas, réplicas e tréplicas, mas o feitor nem sequer suspeitava da traição que Coje Cemeceri, rival do bom Coje Bequi, ia tramando. Foi colhido inteiramente de surpresa uma bela manhã, quando ouviu de repente gritos e vozearia. No mesmo instante, o seu amigo Coje Bequi irrompeu na feitoria, ofegante e transtornado, não podendo senão balbuciar com gesto desesperado: «Aires Correia! Aires Correia!» e logo se seguiu uma turba armada, furiosa e ululante, que se precipitou sobre a casa.
Afinal as coisas começaram a correr bem. O Samorim aceitava a nova aliança e concedia aos portugueses feitoria em terra. Então, à ordem do capitão, Aires Correia desembarcou com 60 companheiros, acompanhados dos dois filhinhos, e levando mercadorias para trocar e vender. A casa oferecida era bela e espaçosa no centro de um grande jardim. Com a bandeira portuguesa a flutuar em cima do edifício, os portugueses sentiram-se bem. Dois mercadores, o árabe Coje Cemeceri, e Coje Bequi nascido na terra, foram destacados pelo Samorim para industriar os estrangeiros, que assim iam e vinham pela cidade, confiantes e satisfeitos.
Satisfeitos também estavam os meninos do feitor, pois depressa arranjaram um amiguinho. Coje Bequi trazia sempre com ele um filho seu, da idade dos pequenos portugueses. Não sei se estes tinham algum conhecimento da língua árabe – que seu pai, aliás, falava correntemente – mas entre crianças, o problema linguístico nunca impediu o bom entendimento. Aires e António brincavam com o mourinho, cujo pai simpatizou com eles, pois eram bonitos e educadinhos. Coje Bequi levava-os amiúde para sua casa, e lá ficavam às vezes dias seguidos com as mulheres e crianças do harém. Noutras ocasiões o feitor ia ao paço do Samorim, e fazia-se acompanhar pelos filhos. O soberano indiano folgava muito de ver os meninos tão branquinhos e tão formosos, e mimoseava-os com brinquedos e bugigangas.
Certamente eram eles os únicos a viver felizes e despreocupados, no meio das intrigas e malquerenças, que os inimigos dos portugueses não tardavam a tecer. Os magnates do mar Vermelho, fulos perante a ameaça de concorrência no comércio da pimenta, até então seu exclusivo, enchiam os ouvidos do volúvel Samorim com acusações e calúnias, respeitantes aos recém-vindos. Aires Correia começou a ver as coisas mal paradas, pois sonegavam-lhe a carga para as naus. De parte a parte houve queixas, réplicas e tréplicas, mas o feitor nem sequer suspeitava da traição que Coje Cemeceri, rival do bom Coje Bequi, ia tramando. Foi colhido inteiramente de surpresa uma bela manhã, quando ouviu de repente gritos e vozearia. No mesmo instante, o seu amigo Coje Bequi irrompeu na feitoria, ofegante e transtornado, não podendo senão balbuciar com gesto desesperado: «Aires Correia! Aires Correia!» e logo se seguiu uma turba armada, furiosa e ululante, que se precipitou sobre a casa.
Os poucos portugueses, quase sem armas, defenderam-se heroicamente, mas não houve tempo, nem para organizar a resistência, nem para que chegassem reforços da armada. Seguiu-se uma carnificina sem piedade. Só escaparam dois ou três, que conseguiram chegar à praia e deitar-se ao mar. Aires Correia morreu combatendo, e a feitoria foi posta a saque.
Pedro Álvares Cabral, horrorizado, viu o fracasso da sua missão em Calecut. Mandou para terá os reféns indianos que tinha a bordo – para quê, dizia, fazer represália nestes inocentes? –, mas bombardeou as casas da praia e os paços do Samorim, antes de se fazer à vela para Cochim, cujo rei o convidava para aí tomar a pimenta.
E os meninos do feitor? A seu respeito, o capitão recebera recado do fiel Coje Bequi. Os rapazes estavam em sua casa
vivos e sãos, e também lá se encontravam três portugueses feridos, que descobriu num pardieiro, escondidos debaixo da palha suja.
De Cochim, a armada pesadamente carregada largou para o reino. Os dois pequenos e os três portugueses ficaram em Calecut, aos cuidados do bom Coje Bequi. Não era isto sem perigo para ele, e, para os homens, sobretudo, não havia segurança, pois facilmente haviam de ser descobertos e denunciados. Coje Bequi resolveu mandá-los para longe da cidade, para viverem nas suas terras com os lavradores. Mandou-lhes rapar as cabeças e as barbas, vestiu-os com trajes de mouros, e deu-lhes azeites com que se untassem, recomendando-lhes «que se pusessem sempre ao sol, o que elles fezeram que em pouco tempo tornar-se-ão tõa pretos como os proprios da terra».
Quanto aos meninos, vestidos como mourinhos, ficaram algum tempo em casa de Coje Bequi, entre suas mulheres, como seus filhos. Aí não corriam grande perigo, ao que parecia, pois o harém era vedado aos homens estranhos à família, mas o pior foi que o Samorim se lembrou deles. Que era feito dos rapazinhos? – perguntou a Coje Bequi. Eram mortos ou vivos? Coje Bequi jurou: que ele lhe cortasse a cabeça se tivesse a menor ideia! Só podia dizer que, no dia da chacina, vira na praia um deles às costas de um negro, que se sumiu na turba, não mais aparecendo.
O Samorim não acreditou. Que lhe trouxesse já os meninos, ordenou, senão havia de ser preso e perder quanto tinha! Muito aflito, o bom Coje Bequi correu à casa, e bem depressa despachou os meninos para a aldeia, onde já se encontravam os três portugueses. Instalou-os todos numa casa perto da praia com uma mulher moura, que se fazia passar por mãe dos rapazes. Entregues aos cuidados desta, lá ficaram os pequenos, perdidos nesse canto esquecido, enquanto o valente Coje Bequi foi fazer frente à raiva do Samorim. Foi preso, espoliado e perseguido, e afinal teve de ir viver para doze léguas de Calecut, em casa de parentes mas nunca denunciou os portugueses. Foi só em 1503, quando Duarte Pacheco, capitão-mor do mar, chegou a Cananor, que Coje Bequi conseguiu enviar uma mensagem, dizendo que os filhos de Aires Correia estavam vivos, bem como os três homens que escondera.
Nessa altura, o Samorim, tão volúvel como um cata-vento, tinha-se mostrado disposto a fazer as pazes com os portugueses. Já andavam alguns destes em Calecut, pois falava-se em abrir outra feitoria. Que estes homens se retirassem imediatamente, aconselhava então Coje Bequi, já que soubera estar o Samorim a armar outra traição, que desfecharia em nova tragédia!
Duarte Pacheco tomou desde logo providências. Assim, numa noite escura de tempestade, uma caravela veio surgir ao largo da costa de Calecut, cujas luzes se viam bruxulear ao longe. As trevas cerravam-se. Ribombou o trovão, e a chuva torrencial dos trópicos caiu em catadupas sobre as ondas revoltas. Como fantasmas deslizando na escuridão, dez portugueses desembarcara em profundo silêncio, levando lanças e panelas de fogo. Atrás, vinham doze pescadores malabares, falando na sua língua entre si, para que, se alguém sentisse a passagem não suspeitasse da presença de estrangeiros. Debaixo da chuva sempre a cair a cântaros, guiados por um criado de Coje Bequi, entraram na cidade e chegaram à casa onde se encontravam os portugueses. Já prevenidos, estes esperavam. Sem proferir palavra, em grande silêncio, fizeram as trouxas e saíram para a rua, empunhando cada qual a sua espada. Andando em fila, chegaram à casa fora da cidade, onde ficavam os filhos de Aires Correia e os três fugitivos, que sem o menor ruído se levantaram e se meteram na fila. «Todos rezando, pedindo a Nosso Senhor que os salvasse», desceram à praia. Nenhum vulto descortinavam no espesso negrume; terra e mar confundiam-se nas trevas envolventes. Um marinheiro lançou-se a nado nas profundidades negras, para chamar as almadias, que estavam de prevenção. Os treze homens, os dois rapazes e a mulher que lhes servia de mãe, embarcaram nelas; os marinheiros, que não cabiam, acompanhavam ao lado agarrando-se por cordas. Assim, alcançaram a caravela, para onde todos subiram - «que Nosso Senhor por sua misericórdia os salvou, de grandes mares da terra que fazia o vento e a chuiva».
Depois do perigo, a alegria – os abraços, os parabéns. Todos se viam livres da morte; os órfãos e refugiados, enfim reunidos aos seus, estavam rijos e sãos mas tão pretos como malabares. Na hora da viração do dia imediato, entraram em Cochim, com bandeiras desfraldadas e salvas de artilharia. No desembarque veio recebê-los o capitão-mor «com lágrimas de prazer». O rei de Cochim, sempre amigo, mostrava-se doido de prazer. Quis ouvir todos os pormenores da ousada fuga. E mais contente ainda ficou por ver ludibriado o seu rival de Calecut. Na verdade, exclamou em conclusão: «nom há cousa no mundo que os Portugueses nom fação se quiserem!»
Pedro Álvares Cabral, horrorizado, viu o fracasso da sua missão em Calecut. Mandou para terá os reféns indianos que tinha a bordo – para quê, dizia, fazer represália nestes inocentes? –, mas bombardeou as casas da praia e os paços do Samorim, antes de se fazer à vela para Cochim, cujo rei o convidava para aí tomar a pimenta.
E os meninos do feitor? A seu respeito, o capitão recebera recado do fiel Coje Bequi. Os rapazes estavam em sua casa
vivos e sãos, e também lá se encontravam três portugueses feridos, que descobriu num pardieiro, escondidos debaixo da palha suja.
De Cochim, a armada pesadamente carregada largou para o reino. Os dois pequenos e os três portugueses ficaram em Calecut, aos cuidados do bom Coje Bequi. Não era isto sem perigo para ele, e, para os homens, sobretudo, não havia segurança, pois facilmente haviam de ser descobertos e denunciados. Coje Bequi resolveu mandá-los para longe da cidade, para viverem nas suas terras com os lavradores. Mandou-lhes rapar as cabeças e as barbas, vestiu-os com trajes de mouros, e deu-lhes azeites com que se untassem, recomendando-lhes «que se pusessem sempre ao sol, o que elles fezeram que em pouco tempo tornar-se-ão tõa pretos como os proprios da terra».
Quanto aos meninos, vestidos como mourinhos, ficaram algum tempo em casa de Coje Bequi, entre suas mulheres, como seus filhos. Aí não corriam grande perigo, ao que parecia, pois o harém era vedado aos homens estranhos à família, mas o pior foi que o Samorim se lembrou deles. Que era feito dos rapazinhos? – perguntou a Coje Bequi. Eram mortos ou vivos? Coje Bequi jurou: que ele lhe cortasse a cabeça se tivesse a menor ideia! Só podia dizer que, no dia da chacina, vira na praia um deles às costas de um negro, que se sumiu na turba, não mais aparecendo.
O Samorim não acreditou. Que lhe trouxesse já os meninos, ordenou, senão havia de ser preso e perder quanto tinha! Muito aflito, o bom Coje Bequi correu à casa, e bem depressa despachou os meninos para a aldeia, onde já se encontravam os três portugueses. Instalou-os todos numa casa perto da praia com uma mulher moura, que se fazia passar por mãe dos rapazes. Entregues aos cuidados desta, lá ficaram os pequenos, perdidos nesse canto esquecido, enquanto o valente Coje Bequi foi fazer frente à raiva do Samorim. Foi preso, espoliado e perseguido, e afinal teve de ir viver para doze léguas de Calecut, em casa de parentes mas nunca denunciou os portugueses. Foi só em 1503, quando Duarte Pacheco, capitão-mor do mar, chegou a Cananor, que Coje Bequi conseguiu enviar uma mensagem, dizendo que os filhos de Aires Correia estavam vivos, bem como os três homens que escondera.
Nessa altura, o Samorim, tão volúvel como um cata-vento, tinha-se mostrado disposto a fazer as pazes com os portugueses. Já andavam alguns destes em Calecut, pois falava-se em abrir outra feitoria. Que estes homens se retirassem imediatamente, aconselhava então Coje Bequi, já que soubera estar o Samorim a armar outra traição, que desfecharia em nova tragédia!
Duarte Pacheco tomou desde logo providências. Assim, numa noite escura de tempestade, uma caravela veio surgir ao largo da costa de Calecut, cujas luzes se viam bruxulear ao longe. As trevas cerravam-se. Ribombou o trovão, e a chuva torrencial dos trópicos caiu em catadupas sobre as ondas revoltas. Como fantasmas deslizando na escuridão, dez portugueses desembarcara em profundo silêncio, levando lanças e panelas de fogo. Atrás, vinham doze pescadores malabares, falando na sua língua entre si, para que, se alguém sentisse a passagem não suspeitasse da presença de estrangeiros. Debaixo da chuva sempre a cair a cântaros, guiados por um criado de Coje Bequi, entraram na cidade e chegaram à casa onde se encontravam os portugueses. Já prevenidos, estes esperavam. Sem proferir palavra, em grande silêncio, fizeram as trouxas e saíram para a rua, empunhando cada qual a sua espada. Andando em fila, chegaram à casa fora da cidade, onde ficavam os filhos de Aires Correia e os três fugitivos, que sem o menor ruído se levantaram e se meteram na fila. «Todos rezando, pedindo a Nosso Senhor que os salvasse», desceram à praia. Nenhum vulto descortinavam no espesso negrume; terra e mar confundiam-se nas trevas envolventes. Um marinheiro lançou-se a nado nas profundidades negras, para chamar as almadias, que estavam de prevenção. Os treze homens, os dois rapazes e a mulher que lhes servia de mãe, embarcaram nelas; os marinheiros, que não cabiam, acompanhavam ao lado agarrando-se por cordas. Assim, alcançaram a caravela, para onde todos subiram - «que Nosso Senhor por sua misericórdia os salvou, de grandes mares da terra que fazia o vento e a chuiva».
Depois do perigo, a alegria – os abraços, os parabéns. Todos se viam livres da morte; os órfãos e refugiados, enfim reunidos aos seus, estavam rijos e sãos mas tão pretos como malabares. Na hora da viração do dia imediato, entraram em Cochim, com bandeiras desfraldadas e salvas de artilharia. No desembarque veio recebê-los o capitão-mor «com lágrimas de prazer». O rei de Cochim, sempre amigo, mostrava-se doido de prazer. Quis ouvir todos os pormenores da ousada fuga. E mais contente ainda ficou por ver ludibriado o seu rival de Calecut. Na verdade, exclamou em conclusão: «nom há cousa no mundo que os Portugueses nom fação se quiserem!»