S. Francisco de Xavier

Na vida de S. Francisco de Xavier há muitas coisas que cativam qualquer pessoa interessante e interessada. Há muitas biografias boas, inclusivamente recentes. Para aqui, interessou-me o ponto de vista da relação de S. Francisco Xavier com o que veio a encontrar quando chegou ao Oriente, e a forma como aí actuou.
Assim, com a devida vénia e agradecimentos ao autor e aos responsáveis pela redacção, direcção e publicação da Enciclopédia Luso-Brasileira de Cultura, reproduzo em primeiro lugar uma biografia de toda a vida do "Apóstolo das Índias", seguida de um texto de Francisco de Sales Baptista, S.J., que se encontra na revista jesuíta Companhia de Jesus: ontem, hoje, amanhã (VII SEEI), o qual põe em relevo a missão de S- Francisco Xavier no Oriente.
I. Jesuíta, apóstolo do Oriente (Castelo de Javier, Navarra, Espanha, 7.4.1506 - Ilha de Sanchoão, China, 3.12.1552). O seu nome de família era Francisco de Jassu y Javier e, por parte de sua mãe, parente do Doutor Martim de Azpilcueta Navarro, professor na Universidade de Coimbra. Seus irmãos Miguel e João seguiram a carreira das armas.
Francisco, a exemplo do pai, jurista pela Universidade de Bolonha, preferiu as letras eclesiásticas. A 14.6.1522, recebeu prima tonsura e, em 1525, tomou o caminho da Universidade de Paris, onde estudou Humanidades (1526-1530), graduando-se, em Março deste ano, mestre em Artes e Teologia (1535-1536). Foi porcionista no Colégio de Sta. Bárbara, regido por Diogo de Gouveia, e, depois do curso filosófico, passou a regente do Colégio de Beauvais (1530-1534).
O ambiente humanista e reformador de Paris impressionou, profundamente, o jovem navarro; mas, em Sta. Bárbara, conhecera Pedro Fabro e Inácio de Loiola. Fez com este os exercícios espirituais e decidiu entrar no grupo de amigos do seu novo mentor de espírito, donde sairia a futura Companhia de Jesus, fazendo com eles, a 15.8.1534, na capela suburbana de Montmartre, votos de pobreza, castidade e peregrinação à Palestina.
Estalando a guerra entre Francisco I e Carlos V, Xavier, através da Alemanha e da Suíça, saiu para a Itália. Em princípios de 1537, juntava-se a pequena fraternidade em Veneza. Não podendo passar à Terra Santa, Inácio aproveitou o compasso de espera e, com os seus companheiros, desceu até Roma, onde, a 3 de Abril, se apresentaram ao Sumo Pontífice, ante o qual discretearam sobre assuntos teológicos, com grande agrado de Paulo III, pedindo-lhe licença de ir à Palestina. O Papa acedeu, concedendo 60 ducados de ajuda para a viagem.
De volta a Veneza em Maio, Xavier recebeu ordens maiores a 24.6, celebrando a 1.ª Missa a 30 de Setembro em Vivarolo. Continuando fechados os mares, Inácio distribuiu os seus companheiros pelas cidades do Norte e Centro, tocando a Xavier a de Bolonha (Outubro 1537-Abril 1538). Regressando a Roma, em aprovada oralmente, a 3.9.1539, a nova Ordem (Companhia de Jesus), Inácio, reconhecido de facto como chefe, tinha Xavier como secretário-geral de toda a corporação (1539-1540).
Querendo o Papa empregar os seus membros também fora de Itália, dois - Simão Rodrigues e Bobadilla, logo substituído por Xavier -, a pedido do rei de Portugal, sob sugestão de Diogo de Gouveia, que conhecera a maior parte deles em Paris, como reitor de Santa Bárbara, foram enviados para Lisboa, a fim de se consagrarem à evangelização da Índia.
Xavier, no séquito do D. Pedro Mascarenhas, chegou à capital no Verão de 1540. D. João III resolveu que Simão Rodrigues ficasse em Portugal, e Mestre Francisco, cuja pregação e exemplo edificaram profundamente a família real e toda a Corte, munido de quatro breves pontifícios que o acreditavam como legado do Papa, revestido de poderes especiais, na Índia Oriental, e o recomendavam ao monarca da Etiópia e outros potentados, embarcou com mais dois jesuítas, Paulo de Camerino e Francisco Mansilha, na nau Santiago do novo governador da Índia, Martim Afonso de Sousa, a 7.4.1541. Invernou na ilha de Moçambique e chegou a Goa aos 6.5.1542.
Durante a monção, consagrou-se com enorme fruto aos ministérios pastorais entre portugueses e indígenas, sobretudo crianças e escravos, adaptando para seu uso o catecismo de João de Barros. Em fins de Setembro de 1542, aceite, em princípio, a direcção do Colégio de S. Paulo para clero indígena, dirigiu-se à Costa da Pescaria, a fim de instruir 20.000 pescadores de pérolas que, de 1535 a 1537, tinham recebido o baptismo, mas careciam de catequese. Aqui, ficou até Setembro de 1543.
Voltando a Goa, recebeu a nomeação de superior da Missão do Oriente, desde o Cabo da Boa Esperança até à China, fez a sua profissão religiosa nas mãos do bispo D. João de Albuquerque e, deixando Paulo Camerte superior no Colégio de S. Paulo, voltou por Cochim à Pescaria com Mansilha, assistindo à cristandade dispersa pela guerra, durante todo o ano de 1544.
Alcançando auxílio do governador para os reis de Coulão e Travancor, baptizou 10.000 pescadores macuas e buscou, em Goa, protecção para a perseguida cristandade de Jafna.
Entretanto, tendo notícia, por António de Paiva, do baptismo de dois chefes indígenas de Macáçar (Celebes), visitou o túmulo de S. Tomé de Meliapor e embarcou para Malaca. Em vez de se dirigir às Celebes, partiu, a 1.1.1546, para as Malucas, aportando a Amboino. Percorreu várias ilhas, instruindo os cristãos.
Encontrando os restos da armada de Rodrigos Lopez de Villalobos, passou a Ternate e Moro e, em Julho de 1547, estava em Malaca, sem antes nem depois ir às Filipinas. Aqui recebeu, por Jorge Álvares, notícias do Japão.
A 31.1.1548, regressava a Cochim pela Pescaria e em Março subia de Goa a Baçaim para consultar D: João de Castro sobre novas fundações, nas Malucas e em Malaca. Querendo partir para Cochim, foi retido pela doença do herói de Diu, assistindo-lhe à morte em Goa, a 6.6.1548.
Recebendo, em todos estes anos, novos reforços da Europa, ia-os distribuindo pelas missões existentes e fundando outras. Constituído, de facto, superior da Missão da Índia, em Janeiro de 1549 voltou a Goa e a 15 de Abril partia para o Japão com Cosme de Torres, João Fernandes e três nipões, de lá vindos com Jorge Álvares. A 24 de Junho deixava Malaca, aportando a Cagoxima, a 15 de Agosto. Demorou-se no Japão dois anos, fundando várias cristandades, mas sem lograr audiência do imperador em Meaco, e regressando de Bungo à Índia, em Novembro de 1551
Em Malaca, esperava-o a patente de provincial do Oriente. Em Fevereiro, entrou em Goa para reorganizar a vida interna da Companhia nas missões da Índia, enviar reforços para o Japão e preparar nova e última expedição: a da China. Feito vice-provincial Gaspar Barzeu e mandando que embarcassem para a Europa os dois primeiros cristãos japoneses em 1553, a 17.4.1552, demandava Malaca, onde devia passar À nau do seu amigo Diogo Pereira. Este chegou nos fins de Maio com ricos presentes para ser enviado embaixador ao imperador da China. Contra toda a expectativa, o capitão do mar, D. Álvaro de Ataíde da Gama, por melindres desconhecidos, embargou o navio de Diogo Pereira e impediu Xavier de fazer a viagem da China, incorrendo, por isso em excomunhão.
Entretanto, desembargada a nau Santa Cruz, do embaixador, embora este ficasse retido em Malaca, Xavier, em meados de Julho, embarcou para a China, chegando a Sanchoão, nos fins de Agosto. Frustrada a entrada em Cantão, tentou penetrar no Celeste Império, ocultamente, dado o malogro da embaixada. Escritas várias cartas para Malaca e licenciado da Companhia Álvaro Ferreira, Que se recusava acompanhá-lo à China, Francisco Xavier esperou, pacientemente, a oportunidade. Nos fins de Novembro, adoeceu gravemente e, assistido apenas pelo criado António China, morreu, consumido de trabalhos.
Com Francisco Xavier abre-se n ova época na evangelização do Oriente. Embora ele trabalhasse ali apenas dez anos e, destes, só cinco pudesse consagrá-los ao apostolado propriamente dito, porque o resto foi absorvido em longas e penosas viagens, Xavier conseguiu, como pioneiro, reconhecer de visu e lançar as bases de uma organização evangelizadora, de tipo centralizado, que se manteve durante séculos, desde o Cabo da Boa esperança até ao Extremo Oriente. Através de centenas de cartas enviadas pessoalmente para a Europa e com um serviço permanente de informações periódicas dos seus colaboradores, conseguiu despertar, em todos os centros da Cristandade, um irreprimível e crescente surto de vocações missionárias. Confiou à Companhia o primeiro seminário de Missões do Oriente (S. Paulo de Goa); promoveu a criação de escolas e colégios para a educação cristã da juventude, em Baçaim, Tana, Cochim, Quíloa, Malaca e Ternate, renovando a vida espiritual de milhares de portugueses dispersos pelas bases militares e comerciais, desde Moçambique e Ormuz ao Japão e à China, promovendo, em condições morais, a miscigenação dos europeus com as raças indígenas. A ele se devem os modelos e primeiros impulsos para uma literatura autóctone cristã, no Sul da Índia e no Japão, trabalhando pela formação de catequistas e clérigos indígenas, e garantindo a a sua assistência espiritual e económica, mercê da ajuda oficial e privada às actividades missionárias. Com o seu incomparável exemplo de dedicação sem limites às populações evangelizadas, de tal modo as cativando que elas nunca mais esqueceram a sua presença, Francisco Xavier tornou-se o modelo do missionário católico, sendo com razão constituído protector de todas as missões.
Colhido, improvisamente, numa ilha deserta, quando aspirava, acaso, a regressar por terra à Europa com um conhecimento directo das possibilidades de evangelização do Oriente e, nomeadamente, da China, só aparentemente viu malogradas as suas esperanças.
Longe de censurar a mobilidade da sua acção evangelizadora, através do Índico, do Pacífico e do mar da China, não podemos deixar de maravilhar-nos da sua audácia e envergadura de prospecção, numa estrutura que não tardou a dar os maiores frutos. Eles foram, de certo, possíveis, graças à sua simpatia irradiante e ao seu maravilhosos poder de adaptação. Mas não seriam tais sem o ambiente português que o acolheu e amparou, desde D. João III e D. Catarina, aos governadores e vice-reis da Índia, capitães de portos, navios e fortaleza de feitores de el-rei, mercadores, soldados e marinheiros, sem esquecer as autoridades religiosas e membros do clero secular e religioso.
Houve as suas excepções. Umas vezes, por hostilidade (D. Álvaro de Ataíde); outras, por desencontro de perspectivas (nos casos do vice-rei D. João de Castro, enquanto Xavier o não conheceu, pessoalmente, e de Cosme de Paiva, bem como talvez o de António Gomes, cuja expulsão da Companhia Santo Inácio, todavia, não homologou).
Tais factos esporádicos não obstaram à sincera e reconhecida amizade que Xavier votou sempre a Portugal, considerando-o sua segunda pátria. Deplorando alguns aspectos negativos da presença portuguesa no Oriente e devotando-se a corrigi-los, o grande apóstolo navarro não regateou elogios à piedade e magnânima franqueza com que os Portugueses o ampararam em todas as suas empresas, e beneficiaram do seu zelo missionário.
II. Para facilidade de leitura - com a devida vénia e agradecimentos ao autor e aos responsáveis pela redacção, direcção e publicação da revista em causa - deturpei um pouco o texto, tendo retirado todas as notas de rodapé. Os interessados na versão integral do artigo poderão aceder ao mesmo pelo link: http://www.jesuitas.pt/Espiritualidade-inaciana-289.aspx
XAVIER AO ENCONTRO DO NOVO MUNDO
Francisco de Sales Baptista, S.J.
Introdução
(…)
Não esqueçamos que ele era missionário. E, acima de tudo, Núncio apostólico ou «embaixador» da Santa Sé para todos os reinos descobertos e a descobrir no Oriente. Creio mesmo que a melhor «chave de leitura» da acção missionária de Xavier é o seu papel de Núncio, que nele se sobrepôs, logo de começo, às suas responsabilidades de evangelizador. Não contava com esta missão da Santa Sé. Foi uma surpresa para ele quando, nas vésperas da partida para a Índia, o Rei lhe entregou os documentos pontifícios que o creditavam como embaixador da Igreja junto de todos os reinos do Oriente já conhecidos e outros que se viessem a descobrir. É isso que explica, a meu ver, os peculiares interesses das suas descobertas, a incessante mobilidade da sua acção missionária e o apoio a estratégias apostólicas que ia descobrindo em equipe com outros missionários.
Daí, as três partes em que vamos distribuir o nosso trabalho:
I – Xavier e a descoberta missionária do novo Mundo
II – Xavier e a expansão missionária por esse novo Mundo
III – Xavier e a inovação missionária nesse novo Mundo
I – Xavier e a descoberta missionária do novo Mundo
Provavelmente as suas descobertas do novo Mundo, no que se refere ao Oriente, começaram já em Paris, no contacto com Diogo Gouveia e os bolseiros portugueses do colégio de Santa Bárbara.
Depois, com os sonhos estranhos, antes ainda de ter sido designado – ele ou qualquer outro – para a Índia. Se não, como se explicam sonhos com índios às costas, quando o horizonte próximo dos seus projectos era apenas a Palestina? Ele mesmo, ao embarcar em Lisboa, relaciona estes sonhos com a missão para onde então partia.
A seguir aos sonhos começam as descobertas reais. É sobretudo na última etapa da viagem, a partir da ilha de Moçambique, que se revelam os peculiares interesses missionários nas descobertas de novas terras que ia conhecendo: em Melinde, o que o encanta é a descoberta do primeiro padrão de sinais cristãos a marcar naquelas paragens os descobrimentos portugueses; em Socotorá é a cristandade, abandonada mas promissora, que aí contacta; ao chegar a Goa é a cidade cheia de evocações cristãs, em igrejas, ermidas, conventos e instituições eclesiais de toda a espécie que ele visita logo à chegada e descreve, na primeira carta, com todo o entusiasmo: a Sé; o Paço do Bispo que preside a todo o Padroado missionário do Oriente; o Colégio internacional de S. Paulo fundado em 1541 para a formação de clero indígena, catequistas e intérpretes para todas as línguas; as Irmandades de leigos cristãos comprometidos em todas as obras
de Misericórdia; o clero local, etc. Não lhe atrai a atenção a intensa actividade portuária de construção naval, de partida e chegada de naus...
Passados meses é a partida para a costa da Pescaria, a primeira missão em terra estrangeira, com língua diferente, sujeita a reis e guerras fora da influência portuguesa; na costa de Travancor são as primeiras experiências de negociações de paz com reis estrangeiros e a surpresa das conversões em massa; depois, as notícias do massacre duma cristandade noutra terra estrangeira, que o levam a pedir em vão a intervenção militar das autoridades portuguesas.
É neste primeiro contacto com reinos estrangeiros, por um lado, e a falta de apoio militar colonial, por outro, que Xavier tem as primeiras desilusões do Império português no Oriente. Não percebia ainda, nessa altura, como perceberá mais tarde, a política, que era a de um Império marítimo e não territorial; de um império comercial e não colonial; de um Império com fortalezas e feitorias baseadas em tratados de amizade com os reinos em que estavam situadas e não conquistadas (algo assim como as actuais bases americanas espalhadas por várias nações). Conquistadas, eram só as consideradas estratégicas por Albuquerque e os organizadores do Império: Goa, Ormuz e Malaca, além de outras que se foram justificando posteriormente (Diu, etc.) e alguns pequenos enclaves adquiridos por oferta doutros reinos em troca de protecção naval (Baçaim, Macau, etc.). Mesmo Cochim, principal base naval do comércio entre Portugal e todo o Oriente, era uma fortaleza negociada. A política estabelecida pelos primeiros Governadores da Índia, D. Francisco de Almeida e Afonso de Albuquerque, era muito clara. Escrevia D. Francisco de Almeida ao Rei por alturas de 1505:
«Acerca da fortaleza, lá em Coulão, quantas mais fortalezas tiverdes, mais fraco será vosso poder: toda vossa força seja no mar, porque se nelle nom formos poderosos – o que Nosso Senhor defenda – tudo logo será contra nós e, se o Rey de Cochim quisesse ser desleal, logo seria destroído, porque as guerras passadas eram com bestas (no norte de Africa), agora a temos com Venezeanos e Turcos do Soldão… Entendamos com o que temos no mar, que são estes novos inimigos – que espero na misericórdia de Deus que se lembrará de nós – que tudo o mais é pouca coisa. Sabei certo que enquanto no mar fordes poderoso, tereis a Índia por vossa; e se isto nom tiverdes no mar, pouco vos prestará fortaleza na terra. E no lançar dos Mouros bem lhe achei o caminho, mas é longa história que se fará quando Nosso Senhor quiser e for servido».
Para amenizar estas primeiras desilusões de Xavier, começaram-lhe a chegar então as notícias doutros reinos onde não havia bases navais portuguesas, mas donde os comerciantes traziam já primícias de conversões: Maldivas, Celebes, Molucas... Precisamente nas Molucas ainda há-de ter outra desilusão: a falta de apoio às suas grandes esperanças na substituição do rei local por Jordão de Freitas.
E quando mais tarde voltou a insistir na ocupação de Socotorá, para libertar dos mouros aquela cristandade oprimida, será precisamente o seu grande amigo Martim Afonso de Sousa que aconselhará o Rei a não fazer tal.
É com estas desilusões que começa a perceber a política predominantemente negocial e diplomática do Império marítimo português no Oriente e a descobrir que o Padroado missionário português nesse espaço geográfico não é um Padroado colonial (de ocupação), mas um Padroado internacional (de negociação). Por isso começa a agir por credenciais de embaixador. Para o Japão e para a China é a primeira vez que pede credenciais ao Governador da Índia e ao Bispo do Padroado do Oriente e age claramente como Núncio apostólico. Já não pede protecção militar, mas apoio diplomático em aliança com os mercadores portugueses que vão ser os seus grandes benfeitores e protectores no terreno.
Com a experiência do Japão vai descobrir até as vantagens deste tipo de império não colonial e deste modo de Padroado missionário para além fronteiras.
Em todas estas descobertas, como vemos, é o aspecto missionário que o interessa: as portas que se abrem ou fecham à evangelização, a geografia humana e religiosa dos novos mundos. Não a geografia física nem as rotas comerciais.
II – Xavier e a expansão missionária por esse novo Mundo
Antes de Xavier, já a expansão missionária tinha chegado, não só às fortalezas e feitorias portuguesas desde Ormuz até às Molucas, mas também extrapolado para territórios estrangeiros desde Socotorá e Costa da Pescaria, Ceilão e Maldivas até às Celebes.
Depois de Xavier, porém, ganhou novo dinamismo, que foi testemunhado quer no Oriente quer na Europa.
No Oriente, confessam os próprios Governadores e outros responsáveis a força explosiva impressa à evangelização em relação ao andamento anterior, devido sobretudo à mobilidade dos Jesuítas.
Na Europa, espalha-se como nunca a ideia missionária, sobretudo a partir da correspondência de Xavier. As suas cartas e as dos seus missionários eram lidas por toda a Europa com tanto ou maior entusiasmo que as notícias das descobertas geográficas e sociológicas. Dá-se então uma onda de expedições missionárias cada vez mais numerosas e qualificadas. Foi certamente esta sedução missionária que levou a Igreja a proclamar Xavier como Padroeiro de todas as Missões. De facto, ele espalhou como poucos a causa missionária e ainda actualmente se sente a sua chamativa influência vocacional.
III – Xavier e a inovação missionária nesse novo Mundo
Se a expansão missionária se deveu sobretudo à sua acção de Núncio apostólico, a inovação missionária tem de ser atribuída às equipes de missionários a trabalhar no terreno. O mérito de Xavier foi ter-lhes deixado espaço de iniciativa (apesar das Instruções que lhes dava), sabê-los ouvir (montando uma boa rede de inter-comunicação entre eles e consigo) e apoiando as boas experiências que iam fazendo (em línguas, costumes, inserção social, sistemas de ensino, etc.).
Desse trabalho em equipe, a partir das bases e não propriamente do trabalho individual de Xavier, foi nascendo um método de inovação missionária que pouco a pouco se iria esclarecendo – o método da adaptação missionária. Podemos ver já nesse método os começos do diálogo inter-religioso, inter-cultural e inter-social consumado nos documentos mais recentes da Igreja para as Missões. Começos apenas, é claro, pois naqueles tempos ainda não se falava destes diálogos com tanta clareza como agora!
Vejamos, portanto, as primeiras aportações desta múltipla equipe missionária de Xavier:
1º para o diálogo inter-religioso: fé-religiões;
2º para o diálogo inter-social: fé-justiça;
3º para o diálogo inter-cultural: fé-cultura.
1º Aportações ao diálogo inter-religioso: fé-religiões
Comecemos por aqui, porque foi a partir deste que se foi sentindo a necessidade de abrir caminho aos outros. Até para os tratados políticos inter-sociais, anteriores à chegada de Xavier, foi o inter-religioso que fez sentir a sua necessidade.
São conhecidos na nossa história os choques inter-religiosos do Cristianismo na convivência com as outras religiões da Índia, ainda muito vivos à chegada de Xavier, quer em Goa, território nacional, quer na Pescaria e noutros territórios estrangeiros. Em Goa, ia-se impondo o princípio europeu e universal em voga cuius regio eius religio – «a cada região sua religião» –, porque era território nacional; na Pescaria, território estrangeiro, já não se podia enveredar por esse caminho de não tolerar os templos, ídolos e culto público das religiões locais. Xavier não viu logo essa diferença e, por isso, é tão criticado. Mas os missionários que ele deixou no terreno foram descobrindo pouco a pouco que era preciso conhecer mais a fundo as religiões locais, dialogar com elas e, para isso, aprender a língua e linguagem em que entender-se directamente. Foi o que levou a aprender a língua, logo de princípio, o P. António Criminal, cujo martírio não lhe deu tempo para ir mais longe e, sobretudo, o P. Henrique Henriques, o primeiro a dominar bem a língua tamil, a fazer a primeira gramática, a montar escola de línguas da região e a dialogar a fundo com as religiões locais. Mérito de Xavier foi ter apreciado o seu trabalho e ter-lhe dado todo o apoio. Graças ao domínio da língua conseguiu corrigir muitos erros na transmissão da doutrina católica através de intérpretes e de catecismos mal traduzidos e também compreender mais a fundo as outras religiões por conversa directa com pessoas competentes. Esta desconfiança de intérpretes vai servir de lição no Japão. Aí Xavier, experimentando por si as más traduções de conceitos cristãos, já funda escola de língua logo desde o princípio.
2º Aportações ao diálogo inter-social: fé-justiça
Com o diálogo inter-religioso está muito ligado o diálogo inter-social fé-justiça. Viram-no logo os primeiros navegadores ao tentar obter bases navais em território estrangeiro: Cochim, Cananor, Chale, Cranganor, Coulão (cf. Silva Rego).
Já o próprio Vasco da Gama tem a primeira surpresa ao querer comprar carne de vaca para os seus marinheiros. Logo que soube que era animal sagrado, teve cuidado de ver que terreno pisava.
Mas foi sobretudo ao formarem-se pequenas comunidades cristãs de portugueses e nativos à volta das fortalezas e outras instituições das bases navais que viram a necessidade de estabelecer tratados de convivência social entre cristãos e hindus. O sistema social de castas punha muitos problemas à igualdade de trato cristão. Como se deviam portar os cristãos em território estrangeiro, no trato e direitos das diversas castas? E, vice-versa, estas, em território da base naval, como portar-se no trato e direitos dos cristãos? E nos conflitos de direitos, a quem competia fazer justiça? Estes e outros problemas deram origem a vários tratados e «concordatas» exemplares que abriram caminho à convivência respeitosa das diversas religiões e à possibilidade de um diálogo social fé-justiça mais aprofundado. Os missionários talvez não conhecessem esses tratados, mas conheciam a prática e costumes por eles criados. Foi isso que facilitou os métodos de adaptação missionária que se foram desenvolvendo depois. Antes da adaptação missionária já tinha havido a adaptação política e social.
Num sistema de castas tão enraizado na religião, mal imaginamos a dificuldade da opção preferencial pelos pobres, da ausência da acepção de pessoas nas assembleias litúrgicas de que tanto fala S. Tiago, da reivindicação de direitos humanos e justiça igual para todos, etc.
Também aqui, o P. Henrique Henriques conseguiu criar uma convivência inter-social mais pacífica na Pescaria, com a separação de jurisdições no religioso e social dos conflitos locais, aproveitando-se da instituição oficial do «Pai dos cristãos» para defender os seus direitos civis e a criação duma espécie de «pré-diáconos permanentes» leigos (com maiores atribuições que catequistas) para presidir às comunidades sem Padres. A experiência destes pré-diáconos abrirá caminho aos futuros dogicos (dôjuku) no Japão.
3º Aportações ao diálogo inter-cultural: fé-cultura
Se foi o diálogo de convivência inter-religiosa que abriu caminho ao diálogo de convivência inter-social, foi um e outro que fizeram sentir a necessidade dum diálogo mais profundo de convivência inter-cultural fé-cultura.
Só quando os missionários começaram a dialogar sem intérpretes com as outras religiões (na Índia e no Japão) e a distinguir a importância das castas na Índia e da jerarquia social no Japão, é que perceberam a necessidade de ir às raízes culturais. Cresceu então o diálogo inter-cultural. Caminho para isso foi não só a elaboração de Gramáticas e a criação de escolas elementares da língua, mas a elaboração de Vocabulários com a colaboração de pessoas das duas línguas em questão. Este processo ir-se-á aperfeiçoando desde o P. Henrique Henriques na Índia até às equipes inter-linguistas promovidas mais tarde no Japão. A importância do conhecimento da Gramática e estrutura duma língua e da riqueza do seu Vocabulário é justamente realçada pelos historiadores da cultura. Por exemplo o Vocabulário da Língua Japónica (1603) do jesuíta Rodrigues Tsuzu (o Intérprete), inclui umas 30.000 palavras e dá informações sobre os seus diversos usos em linguagem regional, em linguagem baixa, em sentido religioso, literário e poético. Este missionário português, assim como o P. Fróis e o Irmão Luís de Almeida (médico), dominavam perfeitamente não só a língua mas a cultura do Japão. Foi com eles que trabalhou o P. Valignano, quando chegou ao Japão, mais de 16 anos depois deles. Fruto do contacto mais directo e profundo com as outras religiões e sociedades foi o valor atribuído à prática das boas maneiras e costumes na convivência civil e dos cerimoniais próprios do trato com os religiosos das outras religiões. Foi este interesse que levou o P. Barzeu e Henrique Henriques na Índia a descobrir a importância das boas relações com os religiosos jogues (Yogis) tão influentes nos crentes hindus e que levou, no Japão, os missionários a prepararem com cristãos japoneses o célebre «Cerimonial» de relações inter-culturais. Este Cerimonial foi organizado pelo P. Valignano, a pedido dos próprios cristãos japoneses mais responsáveis.
Também passou da Índia para o Japão a instituição de clero nativo, à imitação do colégio internacional de S. Paulo para sacerdotes de todas as línguas e do colégio franciscano de Cranganor para vocações de cristãos de S. Tomé, ambos fundados antes da chegada de Xavier. Foi pena que no Japão não tivesse começado mais cedo o seminário de clero nativo. Mas tinha de ser preparado por todo o trabalho inter-cultural anterior.
Conclusão
Na descoberta missionária do novo Mundo, Xavier teve o mérito de estar atento à sensibilidade religiosa dos diversos povos e culturas de que ia tendo notícias e procurar levar lá a presença da Igreja quanto antes.
Na expansão missionária, teve o mérito de acelerar o ritmo de evangelização, dotando em breve tempo de missionários todos os pontos estratégicos até às portas da China.
Na inovação missionária, teve o mérito de apoiar as primeiras aportações de outros ao diálogo inter-religioso, inter-social e inter-cultural. Ele, pessoalmente, neste tríplice diálogo, como vimos, não foi pioneiro mas animador de outros. O mesmo se tem de dizer também de Valignano.
De facto, no diálogo pessoal inter-religioso (fé-religiões), Xavier foi mais controversista à maneira da Contra-reforma, do que ecuménico à maneira moderna. Neste ponto, pouco o influenciou o seu grande amigo Pedro Fabro que não acreditava nada nos debates teológicos a que assistiu entre teólogos católicos e luteranos. Dizia ele que muito desejava conversar com os luteranos,
«não para meter-me a combater com eles in spiritu contradictionis, nem para exasperar a nenhum, ou impedir doutra maneira o fruto que se pretende com os convocados». O que pretendia era, como diria mais tarde a Laínez: «cativá-los para que nos amem e nos tenham em boa conta dentro dos seus espíritos; isto se faz conversando com eles familiarmente em coisas que nos são comuns, a eles e a nós, evitando qualquer controvérsia»…
Xavier podia aproximar-se desta maneira de agir, pois aconselhava tanto o «fazer-se amar». Mas preferia a controvérsia e pedir para o Japão missionários que fossem bons dialéticos…
No diálogo pessoal inter-social (fé-justiça), também não foi pioneiro na negociação diplomática com as castas na Índia nem no combate à escravatura. Aliás, a escravatura era geral em todas as civilizações do seu tempo e não só na civilização cristã ou colonial: por exemplo, o primeiro japonês convertido ofereceu-lhe como prenda um escravo, o «Joane, meu filho» a quem escreveu mais tarde essa bela carta de libertação e promoção social.
No diálogo pessoal inter-cultural é acusado de certos apoios à destruição de ídolos e templos. Mas reparemos que no próprio Japão a destruição de templos budistas e cristãos também era frequente em guerras civis e perseguições.
Mas teve o mérito de descobrir, pouco a pouco, as vantagens que lhe oferecia um tipo de Império predominantemente marítimo (mais comercial e negociador que conquistador, como era o de Portugal no Oriente), e que lhe oferecia também um tipo de Padroado missionário internacional e não colonial, para desenvolver estas experiências de adaptação missionária, que, no interior da Índia, Japão e China, foram as primeiras aportações à moderna missionologia de diálogo inter-religioso, inter-social e inter-cultural. Prova de que descobriu as vantagens deste tipo de Império e de Padroado internacional é que ele foi o primeiro a avisar Espanha que não viesse para o Japão ou China com mentalidade colonial. A Espanha só tinha experiência de padroado em colónias suas; nunca a teve em países estrangeiros com os quais tivesse apenas relações diplomáticas e comerciais. Por isso, quando o Padroado português passou para mãos de Espanha, com a perda da independência em 1580, reacendeu-se o receio que tivera Xavier. Daí que Valignano e os missionários do Padroado português no Japão se opusessem à vinda de missionários do outro Padroado através da colónia espanhola das Filipinas.
Assim, com a devida vénia e agradecimentos ao autor e aos responsáveis pela redacção, direcção e publicação da Enciclopédia Luso-Brasileira de Cultura, reproduzo em primeiro lugar uma biografia de toda a vida do "Apóstolo das Índias", seguida de um texto de Francisco de Sales Baptista, S.J., que se encontra na revista jesuíta Companhia de Jesus: ontem, hoje, amanhã (VII SEEI), o qual põe em relevo a missão de S- Francisco Xavier no Oriente.
I. Jesuíta, apóstolo do Oriente (Castelo de Javier, Navarra, Espanha, 7.4.1506 - Ilha de Sanchoão, China, 3.12.1552). O seu nome de família era Francisco de Jassu y Javier e, por parte de sua mãe, parente do Doutor Martim de Azpilcueta Navarro, professor na Universidade de Coimbra. Seus irmãos Miguel e João seguiram a carreira das armas.
Francisco, a exemplo do pai, jurista pela Universidade de Bolonha, preferiu as letras eclesiásticas. A 14.6.1522, recebeu prima tonsura e, em 1525, tomou o caminho da Universidade de Paris, onde estudou Humanidades (1526-1530), graduando-se, em Março deste ano, mestre em Artes e Teologia (1535-1536). Foi porcionista no Colégio de Sta. Bárbara, regido por Diogo de Gouveia, e, depois do curso filosófico, passou a regente do Colégio de Beauvais (1530-1534).
O ambiente humanista e reformador de Paris impressionou, profundamente, o jovem navarro; mas, em Sta. Bárbara, conhecera Pedro Fabro e Inácio de Loiola. Fez com este os exercícios espirituais e decidiu entrar no grupo de amigos do seu novo mentor de espírito, donde sairia a futura Companhia de Jesus, fazendo com eles, a 15.8.1534, na capela suburbana de Montmartre, votos de pobreza, castidade e peregrinação à Palestina.
Estalando a guerra entre Francisco I e Carlos V, Xavier, através da Alemanha e da Suíça, saiu para a Itália. Em princípios de 1537, juntava-se a pequena fraternidade em Veneza. Não podendo passar à Terra Santa, Inácio aproveitou o compasso de espera e, com os seus companheiros, desceu até Roma, onde, a 3 de Abril, se apresentaram ao Sumo Pontífice, ante o qual discretearam sobre assuntos teológicos, com grande agrado de Paulo III, pedindo-lhe licença de ir à Palestina. O Papa acedeu, concedendo 60 ducados de ajuda para a viagem.
De volta a Veneza em Maio, Xavier recebeu ordens maiores a 24.6, celebrando a 1.ª Missa a 30 de Setembro em Vivarolo. Continuando fechados os mares, Inácio distribuiu os seus companheiros pelas cidades do Norte e Centro, tocando a Xavier a de Bolonha (Outubro 1537-Abril 1538). Regressando a Roma, em aprovada oralmente, a 3.9.1539, a nova Ordem (Companhia de Jesus), Inácio, reconhecido de facto como chefe, tinha Xavier como secretário-geral de toda a corporação (1539-1540).
Querendo o Papa empregar os seus membros também fora de Itália, dois - Simão Rodrigues e Bobadilla, logo substituído por Xavier -, a pedido do rei de Portugal, sob sugestão de Diogo de Gouveia, que conhecera a maior parte deles em Paris, como reitor de Santa Bárbara, foram enviados para Lisboa, a fim de se consagrarem à evangelização da Índia.
Xavier, no séquito do D. Pedro Mascarenhas, chegou à capital no Verão de 1540. D. João III resolveu que Simão Rodrigues ficasse em Portugal, e Mestre Francisco, cuja pregação e exemplo edificaram profundamente a família real e toda a Corte, munido de quatro breves pontifícios que o acreditavam como legado do Papa, revestido de poderes especiais, na Índia Oriental, e o recomendavam ao monarca da Etiópia e outros potentados, embarcou com mais dois jesuítas, Paulo de Camerino e Francisco Mansilha, na nau Santiago do novo governador da Índia, Martim Afonso de Sousa, a 7.4.1541. Invernou na ilha de Moçambique e chegou a Goa aos 6.5.1542.
Durante a monção, consagrou-se com enorme fruto aos ministérios pastorais entre portugueses e indígenas, sobretudo crianças e escravos, adaptando para seu uso o catecismo de João de Barros. Em fins de Setembro de 1542, aceite, em princípio, a direcção do Colégio de S. Paulo para clero indígena, dirigiu-se à Costa da Pescaria, a fim de instruir 20.000 pescadores de pérolas que, de 1535 a 1537, tinham recebido o baptismo, mas careciam de catequese. Aqui, ficou até Setembro de 1543.
Voltando a Goa, recebeu a nomeação de superior da Missão do Oriente, desde o Cabo da Boa Esperança até à China, fez a sua profissão religiosa nas mãos do bispo D. João de Albuquerque e, deixando Paulo Camerte superior no Colégio de S. Paulo, voltou por Cochim à Pescaria com Mansilha, assistindo à cristandade dispersa pela guerra, durante todo o ano de 1544.
Alcançando auxílio do governador para os reis de Coulão e Travancor, baptizou 10.000 pescadores macuas e buscou, em Goa, protecção para a perseguida cristandade de Jafna.
Entretanto, tendo notícia, por António de Paiva, do baptismo de dois chefes indígenas de Macáçar (Celebes), visitou o túmulo de S. Tomé de Meliapor e embarcou para Malaca. Em vez de se dirigir às Celebes, partiu, a 1.1.1546, para as Malucas, aportando a Amboino. Percorreu várias ilhas, instruindo os cristãos.
Encontrando os restos da armada de Rodrigos Lopez de Villalobos, passou a Ternate e Moro e, em Julho de 1547, estava em Malaca, sem antes nem depois ir às Filipinas. Aqui recebeu, por Jorge Álvares, notícias do Japão.
A 31.1.1548, regressava a Cochim pela Pescaria e em Março subia de Goa a Baçaim para consultar D: João de Castro sobre novas fundações, nas Malucas e em Malaca. Querendo partir para Cochim, foi retido pela doença do herói de Diu, assistindo-lhe à morte em Goa, a 6.6.1548.
Recebendo, em todos estes anos, novos reforços da Europa, ia-os distribuindo pelas missões existentes e fundando outras. Constituído, de facto, superior da Missão da Índia, em Janeiro de 1549 voltou a Goa e a 15 de Abril partia para o Japão com Cosme de Torres, João Fernandes e três nipões, de lá vindos com Jorge Álvares. A 24 de Junho deixava Malaca, aportando a Cagoxima, a 15 de Agosto. Demorou-se no Japão dois anos, fundando várias cristandades, mas sem lograr audiência do imperador em Meaco, e regressando de Bungo à Índia, em Novembro de 1551
Em Malaca, esperava-o a patente de provincial do Oriente. Em Fevereiro, entrou em Goa para reorganizar a vida interna da Companhia nas missões da Índia, enviar reforços para o Japão e preparar nova e última expedição: a da China. Feito vice-provincial Gaspar Barzeu e mandando que embarcassem para a Europa os dois primeiros cristãos japoneses em 1553, a 17.4.1552, demandava Malaca, onde devia passar À nau do seu amigo Diogo Pereira. Este chegou nos fins de Maio com ricos presentes para ser enviado embaixador ao imperador da China. Contra toda a expectativa, o capitão do mar, D. Álvaro de Ataíde da Gama, por melindres desconhecidos, embargou o navio de Diogo Pereira e impediu Xavier de fazer a viagem da China, incorrendo, por isso em excomunhão.
Entretanto, desembargada a nau Santa Cruz, do embaixador, embora este ficasse retido em Malaca, Xavier, em meados de Julho, embarcou para a China, chegando a Sanchoão, nos fins de Agosto. Frustrada a entrada em Cantão, tentou penetrar no Celeste Império, ocultamente, dado o malogro da embaixada. Escritas várias cartas para Malaca e licenciado da Companhia Álvaro Ferreira, Que se recusava acompanhá-lo à China, Francisco Xavier esperou, pacientemente, a oportunidade. Nos fins de Novembro, adoeceu gravemente e, assistido apenas pelo criado António China, morreu, consumido de trabalhos.
Com Francisco Xavier abre-se n ova época na evangelização do Oriente. Embora ele trabalhasse ali apenas dez anos e, destes, só cinco pudesse consagrá-los ao apostolado propriamente dito, porque o resto foi absorvido em longas e penosas viagens, Xavier conseguiu, como pioneiro, reconhecer de visu e lançar as bases de uma organização evangelizadora, de tipo centralizado, que se manteve durante séculos, desde o Cabo da Boa esperança até ao Extremo Oriente. Através de centenas de cartas enviadas pessoalmente para a Europa e com um serviço permanente de informações periódicas dos seus colaboradores, conseguiu despertar, em todos os centros da Cristandade, um irreprimível e crescente surto de vocações missionárias. Confiou à Companhia o primeiro seminário de Missões do Oriente (S. Paulo de Goa); promoveu a criação de escolas e colégios para a educação cristã da juventude, em Baçaim, Tana, Cochim, Quíloa, Malaca e Ternate, renovando a vida espiritual de milhares de portugueses dispersos pelas bases militares e comerciais, desde Moçambique e Ormuz ao Japão e à China, promovendo, em condições morais, a miscigenação dos europeus com as raças indígenas. A ele se devem os modelos e primeiros impulsos para uma literatura autóctone cristã, no Sul da Índia e no Japão, trabalhando pela formação de catequistas e clérigos indígenas, e garantindo a a sua assistência espiritual e económica, mercê da ajuda oficial e privada às actividades missionárias. Com o seu incomparável exemplo de dedicação sem limites às populações evangelizadas, de tal modo as cativando que elas nunca mais esqueceram a sua presença, Francisco Xavier tornou-se o modelo do missionário católico, sendo com razão constituído protector de todas as missões.
Colhido, improvisamente, numa ilha deserta, quando aspirava, acaso, a regressar por terra à Europa com um conhecimento directo das possibilidades de evangelização do Oriente e, nomeadamente, da China, só aparentemente viu malogradas as suas esperanças.
Longe de censurar a mobilidade da sua acção evangelizadora, através do Índico, do Pacífico e do mar da China, não podemos deixar de maravilhar-nos da sua audácia e envergadura de prospecção, numa estrutura que não tardou a dar os maiores frutos. Eles foram, de certo, possíveis, graças à sua simpatia irradiante e ao seu maravilhosos poder de adaptação. Mas não seriam tais sem o ambiente português que o acolheu e amparou, desde D. João III e D. Catarina, aos governadores e vice-reis da Índia, capitães de portos, navios e fortaleza de feitores de el-rei, mercadores, soldados e marinheiros, sem esquecer as autoridades religiosas e membros do clero secular e religioso.
Houve as suas excepções. Umas vezes, por hostilidade (D. Álvaro de Ataíde); outras, por desencontro de perspectivas (nos casos do vice-rei D. João de Castro, enquanto Xavier o não conheceu, pessoalmente, e de Cosme de Paiva, bem como talvez o de António Gomes, cuja expulsão da Companhia Santo Inácio, todavia, não homologou).
Tais factos esporádicos não obstaram à sincera e reconhecida amizade que Xavier votou sempre a Portugal, considerando-o sua segunda pátria. Deplorando alguns aspectos negativos da presença portuguesa no Oriente e devotando-se a corrigi-los, o grande apóstolo navarro não regateou elogios à piedade e magnânima franqueza com que os Portugueses o ampararam em todas as suas empresas, e beneficiaram do seu zelo missionário.
II. Para facilidade de leitura - com a devida vénia e agradecimentos ao autor e aos responsáveis pela redacção, direcção e publicação da revista em causa - deturpei um pouco o texto, tendo retirado todas as notas de rodapé. Os interessados na versão integral do artigo poderão aceder ao mesmo pelo link: http://www.jesuitas.pt/Espiritualidade-inaciana-289.aspx
XAVIER AO ENCONTRO DO NOVO MUNDO
Francisco de Sales Baptista, S.J.
Introdução
(…)
Não esqueçamos que ele era missionário. E, acima de tudo, Núncio apostólico ou «embaixador» da Santa Sé para todos os reinos descobertos e a descobrir no Oriente. Creio mesmo que a melhor «chave de leitura» da acção missionária de Xavier é o seu papel de Núncio, que nele se sobrepôs, logo de começo, às suas responsabilidades de evangelizador. Não contava com esta missão da Santa Sé. Foi uma surpresa para ele quando, nas vésperas da partida para a Índia, o Rei lhe entregou os documentos pontifícios que o creditavam como embaixador da Igreja junto de todos os reinos do Oriente já conhecidos e outros que se viessem a descobrir. É isso que explica, a meu ver, os peculiares interesses das suas descobertas, a incessante mobilidade da sua acção missionária e o apoio a estratégias apostólicas que ia descobrindo em equipe com outros missionários.
Daí, as três partes em que vamos distribuir o nosso trabalho:
I – Xavier e a descoberta missionária do novo Mundo
II – Xavier e a expansão missionária por esse novo Mundo
III – Xavier e a inovação missionária nesse novo Mundo
I – Xavier e a descoberta missionária do novo Mundo
Provavelmente as suas descobertas do novo Mundo, no que se refere ao Oriente, começaram já em Paris, no contacto com Diogo Gouveia e os bolseiros portugueses do colégio de Santa Bárbara.
Depois, com os sonhos estranhos, antes ainda de ter sido designado – ele ou qualquer outro – para a Índia. Se não, como se explicam sonhos com índios às costas, quando o horizonte próximo dos seus projectos era apenas a Palestina? Ele mesmo, ao embarcar em Lisboa, relaciona estes sonhos com a missão para onde então partia.
A seguir aos sonhos começam as descobertas reais. É sobretudo na última etapa da viagem, a partir da ilha de Moçambique, que se revelam os peculiares interesses missionários nas descobertas de novas terras que ia conhecendo: em Melinde, o que o encanta é a descoberta do primeiro padrão de sinais cristãos a marcar naquelas paragens os descobrimentos portugueses; em Socotorá é a cristandade, abandonada mas promissora, que aí contacta; ao chegar a Goa é a cidade cheia de evocações cristãs, em igrejas, ermidas, conventos e instituições eclesiais de toda a espécie que ele visita logo à chegada e descreve, na primeira carta, com todo o entusiasmo: a Sé; o Paço do Bispo que preside a todo o Padroado missionário do Oriente; o Colégio internacional de S. Paulo fundado em 1541 para a formação de clero indígena, catequistas e intérpretes para todas as línguas; as Irmandades de leigos cristãos comprometidos em todas as obras
de Misericórdia; o clero local, etc. Não lhe atrai a atenção a intensa actividade portuária de construção naval, de partida e chegada de naus...
Passados meses é a partida para a costa da Pescaria, a primeira missão em terra estrangeira, com língua diferente, sujeita a reis e guerras fora da influência portuguesa; na costa de Travancor são as primeiras experiências de negociações de paz com reis estrangeiros e a surpresa das conversões em massa; depois, as notícias do massacre duma cristandade noutra terra estrangeira, que o levam a pedir em vão a intervenção militar das autoridades portuguesas.
É neste primeiro contacto com reinos estrangeiros, por um lado, e a falta de apoio militar colonial, por outro, que Xavier tem as primeiras desilusões do Império português no Oriente. Não percebia ainda, nessa altura, como perceberá mais tarde, a política, que era a de um Império marítimo e não territorial; de um império comercial e não colonial; de um Império com fortalezas e feitorias baseadas em tratados de amizade com os reinos em que estavam situadas e não conquistadas (algo assim como as actuais bases americanas espalhadas por várias nações). Conquistadas, eram só as consideradas estratégicas por Albuquerque e os organizadores do Império: Goa, Ormuz e Malaca, além de outras que se foram justificando posteriormente (Diu, etc.) e alguns pequenos enclaves adquiridos por oferta doutros reinos em troca de protecção naval (Baçaim, Macau, etc.). Mesmo Cochim, principal base naval do comércio entre Portugal e todo o Oriente, era uma fortaleza negociada. A política estabelecida pelos primeiros Governadores da Índia, D. Francisco de Almeida e Afonso de Albuquerque, era muito clara. Escrevia D. Francisco de Almeida ao Rei por alturas de 1505:
«Acerca da fortaleza, lá em Coulão, quantas mais fortalezas tiverdes, mais fraco será vosso poder: toda vossa força seja no mar, porque se nelle nom formos poderosos – o que Nosso Senhor defenda – tudo logo será contra nós e, se o Rey de Cochim quisesse ser desleal, logo seria destroído, porque as guerras passadas eram com bestas (no norte de Africa), agora a temos com Venezeanos e Turcos do Soldão… Entendamos com o que temos no mar, que são estes novos inimigos – que espero na misericórdia de Deus que se lembrará de nós – que tudo o mais é pouca coisa. Sabei certo que enquanto no mar fordes poderoso, tereis a Índia por vossa; e se isto nom tiverdes no mar, pouco vos prestará fortaleza na terra. E no lançar dos Mouros bem lhe achei o caminho, mas é longa história que se fará quando Nosso Senhor quiser e for servido».
Para amenizar estas primeiras desilusões de Xavier, começaram-lhe a chegar então as notícias doutros reinos onde não havia bases navais portuguesas, mas donde os comerciantes traziam já primícias de conversões: Maldivas, Celebes, Molucas... Precisamente nas Molucas ainda há-de ter outra desilusão: a falta de apoio às suas grandes esperanças na substituição do rei local por Jordão de Freitas.
E quando mais tarde voltou a insistir na ocupação de Socotorá, para libertar dos mouros aquela cristandade oprimida, será precisamente o seu grande amigo Martim Afonso de Sousa que aconselhará o Rei a não fazer tal.
É com estas desilusões que começa a perceber a política predominantemente negocial e diplomática do Império marítimo português no Oriente e a descobrir que o Padroado missionário português nesse espaço geográfico não é um Padroado colonial (de ocupação), mas um Padroado internacional (de negociação). Por isso começa a agir por credenciais de embaixador. Para o Japão e para a China é a primeira vez que pede credenciais ao Governador da Índia e ao Bispo do Padroado do Oriente e age claramente como Núncio apostólico. Já não pede protecção militar, mas apoio diplomático em aliança com os mercadores portugueses que vão ser os seus grandes benfeitores e protectores no terreno.
Com a experiência do Japão vai descobrir até as vantagens deste tipo de império não colonial e deste modo de Padroado missionário para além fronteiras.
Em todas estas descobertas, como vemos, é o aspecto missionário que o interessa: as portas que se abrem ou fecham à evangelização, a geografia humana e religiosa dos novos mundos. Não a geografia física nem as rotas comerciais.
II – Xavier e a expansão missionária por esse novo Mundo
Antes de Xavier, já a expansão missionária tinha chegado, não só às fortalezas e feitorias portuguesas desde Ormuz até às Molucas, mas também extrapolado para territórios estrangeiros desde Socotorá e Costa da Pescaria, Ceilão e Maldivas até às Celebes.
Depois de Xavier, porém, ganhou novo dinamismo, que foi testemunhado quer no Oriente quer na Europa.
No Oriente, confessam os próprios Governadores e outros responsáveis a força explosiva impressa à evangelização em relação ao andamento anterior, devido sobretudo à mobilidade dos Jesuítas.
Na Europa, espalha-se como nunca a ideia missionária, sobretudo a partir da correspondência de Xavier. As suas cartas e as dos seus missionários eram lidas por toda a Europa com tanto ou maior entusiasmo que as notícias das descobertas geográficas e sociológicas. Dá-se então uma onda de expedições missionárias cada vez mais numerosas e qualificadas. Foi certamente esta sedução missionária que levou a Igreja a proclamar Xavier como Padroeiro de todas as Missões. De facto, ele espalhou como poucos a causa missionária e ainda actualmente se sente a sua chamativa influência vocacional.
III – Xavier e a inovação missionária nesse novo Mundo
Se a expansão missionária se deveu sobretudo à sua acção de Núncio apostólico, a inovação missionária tem de ser atribuída às equipes de missionários a trabalhar no terreno. O mérito de Xavier foi ter-lhes deixado espaço de iniciativa (apesar das Instruções que lhes dava), sabê-los ouvir (montando uma boa rede de inter-comunicação entre eles e consigo) e apoiando as boas experiências que iam fazendo (em línguas, costumes, inserção social, sistemas de ensino, etc.).
Desse trabalho em equipe, a partir das bases e não propriamente do trabalho individual de Xavier, foi nascendo um método de inovação missionária que pouco a pouco se iria esclarecendo – o método da adaptação missionária. Podemos ver já nesse método os começos do diálogo inter-religioso, inter-cultural e inter-social consumado nos documentos mais recentes da Igreja para as Missões. Começos apenas, é claro, pois naqueles tempos ainda não se falava destes diálogos com tanta clareza como agora!
Vejamos, portanto, as primeiras aportações desta múltipla equipe missionária de Xavier:
1º para o diálogo inter-religioso: fé-religiões;
2º para o diálogo inter-social: fé-justiça;
3º para o diálogo inter-cultural: fé-cultura.
1º Aportações ao diálogo inter-religioso: fé-religiões
Comecemos por aqui, porque foi a partir deste que se foi sentindo a necessidade de abrir caminho aos outros. Até para os tratados políticos inter-sociais, anteriores à chegada de Xavier, foi o inter-religioso que fez sentir a sua necessidade.
São conhecidos na nossa história os choques inter-religiosos do Cristianismo na convivência com as outras religiões da Índia, ainda muito vivos à chegada de Xavier, quer em Goa, território nacional, quer na Pescaria e noutros territórios estrangeiros. Em Goa, ia-se impondo o princípio europeu e universal em voga cuius regio eius religio – «a cada região sua religião» –, porque era território nacional; na Pescaria, território estrangeiro, já não se podia enveredar por esse caminho de não tolerar os templos, ídolos e culto público das religiões locais. Xavier não viu logo essa diferença e, por isso, é tão criticado. Mas os missionários que ele deixou no terreno foram descobrindo pouco a pouco que era preciso conhecer mais a fundo as religiões locais, dialogar com elas e, para isso, aprender a língua e linguagem em que entender-se directamente. Foi o que levou a aprender a língua, logo de princípio, o P. António Criminal, cujo martírio não lhe deu tempo para ir mais longe e, sobretudo, o P. Henrique Henriques, o primeiro a dominar bem a língua tamil, a fazer a primeira gramática, a montar escola de línguas da região e a dialogar a fundo com as religiões locais. Mérito de Xavier foi ter apreciado o seu trabalho e ter-lhe dado todo o apoio. Graças ao domínio da língua conseguiu corrigir muitos erros na transmissão da doutrina católica através de intérpretes e de catecismos mal traduzidos e também compreender mais a fundo as outras religiões por conversa directa com pessoas competentes. Esta desconfiança de intérpretes vai servir de lição no Japão. Aí Xavier, experimentando por si as más traduções de conceitos cristãos, já funda escola de língua logo desde o princípio.
2º Aportações ao diálogo inter-social: fé-justiça
Com o diálogo inter-religioso está muito ligado o diálogo inter-social fé-justiça. Viram-no logo os primeiros navegadores ao tentar obter bases navais em território estrangeiro: Cochim, Cananor, Chale, Cranganor, Coulão (cf. Silva Rego).
Já o próprio Vasco da Gama tem a primeira surpresa ao querer comprar carne de vaca para os seus marinheiros. Logo que soube que era animal sagrado, teve cuidado de ver que terreno pisava.
Mas foi sobretudo ao formarem-se pequenas comunidades cristãs de portugueses e nativos à volta das fortalezas e outras instituições das bases navais que viram a necessidade de estabelecer tratados de convivência social entre cristãos e hindus. O sistema social de castas punha muitos problemas à igualdade de trato cristão. Como se deviam portar os cristãos em território estrangeiro, no trato e direitos das diversas castas? E, vice-versa, estas, em território da base naval, como portar-se no trato e direitos dos cristãos? E nos conflitos de direitos, a quem competia fazer justiça? Estes e outros problemas deram origem a vários tratados e «concordatas» exemplares que abriram caminho à convivência respeitosa das diversas religiões e à possibilidade de um diálogo social fé-justiça mais aprofundado. Os missionários talvez não conhecessem esses tratados, mas conheciam a prática e costumes por eles criados. Foi isso que facilitou os métodos de adaptação missionária que se foram desenvolvendo depois. Antes da adaptação missionária já tinha havido a adaptação política e social.
Num sistema de castas tão enraizado na religião, mal imaginamos a dificuldade da opção preferencial pelos pobres, da ausência da acepção de pessoas nas assembleias litúrgicas de que tanto fala S. Tiago, da reivindicação de direitos humanos e justiça igual para todos, etc.
Também aqui, o P. Henrique Henriques conseguiu criar uma convivência inter-social mais pacífica na Pescaria, com a separação de jurisdições no religioso e social dos conflitos locais, aproveitando-se da instituição oficial do «Pai dos cristãos» para defender os seus direitos civis e a criação duma espécie de «pré-diáconos permanentes» leigos (com maiores atribuições que catequistas) para presidir às comunidades sem Padres. A experiência destes pré-diáconos abrirá caminho aos futuros dogicos (dôjuku) no Japão.
3º Aportações ao diálogo inter-cultural: fé-cultura
Se foi o diálogo de convivência inter-religiosa que abriu caminho ao diálogo de convivência inter-social, foi um e outro que fizeram sentir a necessidade dum diálogo mais profundo de convivência inter-cultural fé-cultura.
Só quando os missionários começaram a dialogar sem intérpretes com as outras religiões (na Índia e no Japão) e a distinguir a importância das castas na Índia e da jerarquia social no Japão, é que perceberam a necessidade de ir às raízes culturais. Cresceu então o diálogo inter-cultural. Caminho para isso foi não só a elaboração de Gramáticas e a criação de escolas elementares da língua, mas a elaboração de Vocabulários com a colaboração de pessoas das duas línguas em questão. Este processo ir-se-á aperfeiçoando desde o P. Henrique Henriques na Índia até às equipes inter-linguistas promovidas mais tarde no Japão. A importância do conhecimento da Gramática e estrutura duma língua e da riqueza do seu Vocabulário é justamente realçada pelos historiadores da cultura. Por exemplo o Vocabulário da Língua Japónica (1603) do jesuíta Rodrigues Tsuzu (o Intérprete), inclui umas 30.000 palavras e dá informações sobre os seus diversos usos em linguagem regional, em linguagem baixa, em sentido religioso, literário e poético. Este missionário português, assim como o P. Fróis e o Irmão Luís de Almeida (médico), dominavam perfeitamente não só a língua mas a cultura do Japão. Foi com eles que trabalhou o P. Valignano, quando chegou ao Japão, mais de 16 anos depois deles. Fruto do contacto mais directo e profundo com as outras religiões e sociedades foi o valor atribuído à prática das boas maneiras e costumes na convivência civil e dos cerimoniais próprios do trato com os religiosos das outras religiões. Foi este interesse que levou o P. Barzeu e Henrique Henriques na Índia a descobrir a importância das boas relações com os religiosos jogues (Yogis) tão influentes nos crentes hindus e que levou, no Japão, os missionários a prepararem com cristãos japoneses o célebre «Cerimonial» de relações inter-culturais. Este Cerimonial foi organizado pelo P. Valignano, a pedido dos próprios cristãos japoneses mais responsáveis.
Também passou da Índia para o Japão a instituição de clero nativo, à imitação do colégio internacional de S. Paulo para sacerdotes de todas as línguas e do colégio franciscano de Cranganor para vocações de cristãos de S. Tomé, ambos fundados antes da chegada de Xavier. Foi pena que no Japão não tivesse começado mais cedo o seminário de clero nativo. Mas tinha de ser preparado por todo o trabalho inter-cultural anterior.
Conclusão
Na descoberta missionária do novo Mundo, Xavier teve o mérito de estar atento à sensibilidade religiosa dos diversos povos e culturas de que ia tendo notícias e procurar levar lá a presença da Igreja quanto antes.
Na expansão missionária, teve o mérito de acelerar o ritmo de evangelização, dotando em breve tempo de missionários todos os pontos estratégicos até às portas da China.
Na inovação missionária, teve o mérito de apoiar as primeiras aportações de outros ao diálogo inter-religioso, inter-social e inter-cultural. Ele, pessoalmente, neste tríplice diálogo, como vimos, não foi pioneiro mas animador de outros. O mesmo se tem de dizer também de Valignano.
De facto, no diálogo pessoal inter-religioso (fé-religiões), Xavier foi mais controversista à maneira da Contra-reforma, do que ecuménico à maneira moderna. Neste ponto, pouco o influenciou o seu grande amigo Pedro Fabro que não acreditava nada nos debates teológicos a que assistiu entre teólogos católicos e luteranos. Dizia ele que muito desejava conversar com os luteranos,
«não para meter-me a combater com eles in spiritu contradictionis, nem para exasperar a nenhum, ou impedir doutra maneira o fruto que se pretende com os convocados». O que pretendia era, como diria mais tarde a Laínez: «cativá-los para que nos amem e nos tenham em boa conta dentro dos seus espíritos; isto se faz conversando com eles familiarmente em coisas que nos são comuns, a eles e a nós, evitando qualquer controvérsia»…
Xavier podia aproximar-se desta maneira de agir, pois aconselhava tanto o «fazer-se amar». Mas preferia a controvérsia e pedir para o Japão missionários que fossem bons dialéticos…
No diálogo pessoal inter-social (fé-justiça), também não foi pioneiro na negociação diplomática com as castas na Índia nem no combate à escravatura. Aliás, a escravatura era geral em todas as civilizações do seu tempo e não só na civilização cristã ou colonial: por exemplo, o primeiro japonês convertido ofereceu-lhe como prenda um escravo, o «Joane, meu filho» a quem escreveu mais tarde essa bela carta de libertação e promoção social.
No diálogo pessoal inter-cultural é acusado de certos apoios à destruição de ídolos e templos. Mas reparemos que no próprio Japão a destruição de templos budistas e cristãos também era frequente em guerras civis e perseguições.
Mas teve o mérito de descobrir, pouco a pouco, as vantagens que lhe oferecia um tipo de Império predominantemente marítimo (mais comercial e negociador que conquistador, como era o de Portugal no Oriente), e que lhe oferecia também um tipo de Padroado missionário internacional e não colonial, para desenvolver estas experiências de adaptação missionária, que, no interior da Índia, Japão e China, foram as primeiras aportações à moderna missionologia de diálogo inter-religioso, inter-social e inter-cultural. Prova de que descobriu as vantagens deste tipo de Império e de Padroado internacional é que ele foi o primeiro a avisar Espanha que não viesse para o Japão ou China com mentalidade colonial. A Espanha só tinha experiência de padroado em colónias suas; nunca a teve em países estrangeiros com os quais tivesse apenas relações diplomáticas e comerciais. Por isso, quando o Padroado português passou para mãos de Espanha, com a perda da independência em 1580, reacendeu-se o receio que tivera Xavier. Daí que Valignano e os missionários do Padroado português no Japão se opusessem à vinda de missionários do outro Padroado através da colónia espanhola das Filipinas.