2. Um amigo de Afonso de Albuquerque – Recortes de Pequena história, Elaine Sanceau
Ao grande governador, sobravam inimigos. O génio parece ter o condão de fazer espumar de raiva os espíritos mesquinhos. Por isso não admira que, à volta de Albuquerque, qual enxame de vespas, zumbissem os invejosos e intriguistas, da laia de um Gaspar Pereira, um António Real, um Lourenço Moreno e outros que tais – mas também teve bons amigos. Note-se, contudo, que estes eram todos homens de bem. Do estudo dos documentos e cronistas, sobressai claramente que os melhores elementos que então havia na Índia – quer os mais honrados, quer os mais valentes – eram devotos do governador.
Entre os mais distintos e dedicados desse grupo de escol, para não falar de Pêro de Alpoem – que é digno de artigo à parte, salienta-se Diogo Fernandes de Beja, moço da câmara de el-rei D. Manuel, que chegou à Índia em 1510, na armada do marechal D. Fernando Coutinho. Figura simpática, a deste fidalgo alentejano – muito «gentilhomem» fisicamente, conforme Gaspar Correia, guerreiro destemido, marítimo competente, amado de seus homens e fino diplomata. De Diogo Fernandes nunca ouvimos dizer senão bem, e era ele, afirma o mesmo Correia, «muyto da amizade do Governador». Abona isto o próprio Albuquerque, escrevendo ao Rei, que devia «daver prazer de a vossa guarda-roupa criar um tam bom homem e que tam booa conta sempre deu de sy e dos carregos que lhe pus nas mãos». E assim se mostrou, de facto, continuadamente Diogo Fernandes durante os seis anos que – Albuquerque governou a Índia, acompanhando-o fielmente em todas as peripécias e perigos, até àquela triste manhã de Dezembro de 1515, quando desembarcou em Goa com os restos mortais do seu grande capitão.
Em 1510, mal chegado com o Governador a Cochim, Diogo Fernandes assistiu à infeliz expedição contra Calecut, comandada pelo marechal, cuja teimosia fez fracassar a tentativa. Foi só o expediente de Albuquerque que conseguiu o reembarque, pondo a salvo a maior parte das tropas. Mas apesar de todo o seu esforço, e com perigo da própria vida, não pôde evitar a morte do imprudente marechal. Na sangrenta confusão da última fase do combate, quando Albuquerque se lançou de novo para o cetro da tormenta - «nam chegou comygo omde estava ho marychall», escreve ele, «senam a minha bandeira e Digo Fernandes».
Nesse mesmo ano, Diogo Fernandes tomou parte honrosa na primeira e segunda tomada de Goa Às forças do Idalcão. Esteve ao lado do Governador - «que elle chamou que com elle fosse» - no glorioso dia de 25 de Novembro, em que Goa se tornou portuguesa para sempre. Era a sua sina: onde quer que se praticasse façanhas, era certo estar presente.
Não foi com Albuquerque a Malaca. Ficou encarregado de outra missão de grande responsabilidade: a de andar com a armada da costa de além ao largo do cabo de Gardafui, para impedir a passagem das naus de Meca. Em seguida, devia ir desmantelar a fortaleza de Socotorá, julgada inútil, dirigindo-se depois ao Golfo Pérsico para aguardar ali o Governador, e, não o encontrando, voltar a Goa, trazendo com ele as páreas de Ormuz.
Tudo isto cumpriu pontualmente Digo Fernandes. E fez mais e melhor. Chegando a Goa, antes do Governador, achou que tudo ia às avessas – a cidade cercada pelas forças do Idalcão; o capitão deixado por Albuquerque morto em combate; o capitão interino, Diogo Mendes de Vasconcelos, tomando boa conta da defesa mas sem querer preocupar-se com mais nada, por estar desavindo com o Governador; e o capitão do mar, Manuel de Lacerda, agravado por não ter sido nomeado para a capitania de Goa – «que lhe pareceo que a mereceo milhor que quantos avia na India» -, desinteressando-se de todos os negócios internos da cidade. De tudo quanto Albuquerque ordenara antes de partir, nada estava feito, «pois nam avia quem ysto folgava de grangear e acrecentar».
Entre os mais distintos e dedicados desse grupo de escol, para não falar de Pêro de Alpoem – que é digno de artigo à parte, salienta-se Diogo Fernandes de Beja, moço da câmara de el-rei D. Manuel, que chegou à Índia em 1510, na armada do marechal D. Fernando Coutinho. Figura simpática, a deste fidalgo alentejano – muito «gentilhomem» fisicamente, conforme Gaspar Correia, guerreiro destemido, marítimo competente, amado de seus homens e fino diplomata. De Diogo Fernandes nunca ouvimos dizer senão bem, e era ele, afirma o mesmo Correia, «muyto da amizade do Governador». Abona isto o próprio Albuquerque, escrevendo ao Rei, que devia «daver prazer de a vossa guarda-roupa criar um tam bom homem e que tam booa conta sempre deu de sy e dos carregos que lhe pus nas mãos». E assim se mostrou, de facto, continuadamente Diogo Fernandes durante os seis anos que – Albuquerque governou a Índia, acompanhando-o fielmente em todas as peripécias e perigos, até àquela triste manhã de Dezembro de 1515, quando desembarcou em Goa com os restos mortais do seu grande capitão.
Em 1510, mal chegado com o Governador a Cochim, Diogo Fernandes assistiu à infeliz expedição contra Calecut, comandada pelo marechal, cuja teimosia fez fracassar a tentativa. Foi só o expediente de Albuquerque que conseguiu o reembarque, pondo a salvo a maior parte das tropas. Mas apesar de todo o seu esforço, e com perigo da própria vida, não pôde evitar a morte do imprudente marechal. Na sangrenta confusão da última fase do combate, quando Albuquerque se lançou de novo para o cetro da tormenta - «nam chegou comygo omde estava ho marychall», escreve ele, «senam a minha bandeira e Digo Fernandes».
Nesse mesmo ano, Diogo Fernandes tomou parte honrosa na primeira e segunda tomada de Goa Às forças do Idalcão. Esteve ao lado do Governador - «que elle chamou que com elle fosse» - no glorioso dia de 25 de Novembro, em que Goa se tornou portuguesa para sempre. Era a sua sina: onde quer que se praticasse façanhas, era certo estar presente.
Não foi com Albuquerque a Malaca. Ficou encarregado de outra missão de grande responsabilidade: a de andar com a armada da costa de além ao largo do cabo de Gardafui, para impedir a passagem das naus de Meca. Em seguida, devia ir desmantelar a fortaleza de Socotorá, julgada inútil, dirigindo-se depois ao Golfo Pérsico para aguardar ali o Governador, e, não o encontrando, voltar a Goa, trazendo com ele as páreas de Ormuz.
Tudo isto cumpriu pontualmente Digo Fernandes. E fez mais e melhor. Chegando a Goa, antes do Governador, achou que tudo ia às avessas – a cidade cercada pelas forças do Idalcão; o capitão deixado por Albuquerque morto em combate; o capitão interino, Diogo Mendes de Vasconcelos, tomando boa conta da defesa mas sem querer preocupar-se com mais nada, por estar desavindo com o Governador; e o capitão do mar, Manuel de Lacerda, agravado por não ter sido nomeado para a capitania de Goa – «que lhe pareceo que a mereceo milhor que quantos avia na India» -, desinteressando-se de todos os negócios internos da cidade. De tudo quanto Albuquerque ordenara antes de partir, nada estava feito, «pois nam avia quem ysto folgava de grangear e acrecentar».
Ora Digo Fernandes era fino - «todas estas cousas entendeu sem mostrar n´ysso entendimento». E era ainda, como diz Correia, «nobre de condição», e folgava muito «de glorificar as cousas de Afonso d´Albuquerque, de que era grande amigo». Abstendo-se, pois, de todo o comentário desagradável, tomou uma estância nos muros da cidade e, aposentando-se nos cubelos, mandou fazer casas de palha para os homens, a quem dava «grande mesa, fazendo grandes gastos». Depreende-se não haver quem não gostasse de Diogo Fernandes. Com o seu tacto habitual, e sempre «sem n´ysso mostrar entendimento», em conversa amena com o capitão conseguiu que este tomasse as providências já sugeridas por Albuquerque, no sentido de organizar a administração de Goa, elegendo almotacés, vereadores e outros oficiais, com «que todos muytos folgavão». Assim, quando o Governador, depois da demorada e atribulada torna-viagem de Malaca, regressou à sua querida cidade, achou tudo já posto «em começo de boa ordem».
Ainda noutra coisa, antes desta, o fiel Diogo Fernandes mostrara a sua desinteressada devoção. Quando chegara a armada do Reino, ele dissuadira os capitães de intentar o descerco da cidade sem a vinda de Albuquerque – porque ele era «muyto amigo do Governador e quis estorvar que ninguém ganhasse esta honra senão elle». De facto, o conquistador ganhou não pouca honra na ousada manobra com que livrou Goa da opressão dos Turcos, ao tomar Benasterim ao inimigo. Não se vai no entanto sem dizer que nesta jornada colaborou Diogo Fernandes, citando Albuquerque seu nome entre vários «homens de bem» que ficaram feridos e queimados nesse dia.
Na viagem de exploração do mar Roxo, o Governador embarcou na nau capitaneada pelo leal amigo, o qual, nas escadas postas às muralhas de Adem, apanhou uma espingardada no peito, «de que trouxe o pelouro enquanto viveo», informa Gaspar Correia. Mas, apesar de «muyto ferido» - no dizer de Albuquerque -, quando nas areias do mar Vermelho a nau tocou em seco, Diogo Fernandes logo «sayo acima e mandou muy bem a não, e trabalhou muyto pela sua salvaçam».
Não era só nos campos de batalha ou nos perigos do mar que Diogo Fernandes brilhava. No ano de 1514, vemo-lo encarregado de uma luzida embaixada à corte de Cambaia, com a delicada missão de sondar as disposições do soberano deste grande reino, com referência a uma fortaleza portuguesa em Dio. Diogo Fernandes era «homem abastado e grandioso». Compreendia perfeitamente as ideias de Albuquerque sobre a necessidade de fazer figura nas deslumbrantes cortes orientais, e não se importava de gastar dinheiro no desempenho do seu papel. Mandou fazer ricos vestidos, levou preciosas pratas para serviço de mesa. Para o seu aposento e de seu séquito, armou uma magnífica tenda, onde podiam caber 500 pessoas. De fora era coberta de panos brancos e coloridos, e por dentro toda forrada de seda. Tinha compartimentos de câmara e sala, havendo naquela um leito dourado, com paramentos e colchas de seda e almofadas de cetim, e nesta viam-se cadeiras rasas e escabelos cobertos de belas alcatifas. Diogo Fernandes levava também cozinheiros muito bons, para banquetear os grandes da terra «com muytas conservas e vinhos finos e cheirosos». E, para maior fausto, o Governador dera ao seu embaixador uma garbosa guarda de cem canarins com suas armas.
Ainda noutra coisa, antes desta, o fiel Diogo Fernandes mostrara a sua desinteressada devoção. Quando chegara a armada do Reino, ele dissuadira os capitães de intentar o descerco da cidade sem a vinda de Albuquerque – porque ele era «muyto amigo do Governador e quis estorvar que ninguém ganhasse esta honra senão elle». De facto, o conquistador ganhou não pouca honra na ousada manobra com que livrou Goa da opressão dos Turcos, ao tomar Benasterim ao inimigo. Não se vai no entanto sem dizer que nesta jornada colaborou Diogo Fernandes, citando Albuquerque seu nome entre vários «homens de bem» que ficaram feridos e queimados nesse dia.
Na viagem de exploração do mar Roxo, o Governador embarcou na nau capitaneada pelo leal amigo, o qual, nas escadas postas às muralhas de Adem, apanhou uma espingardada no peito, «de que trouxe o pelouro enquanto viveo», informa Gaspar Correia. Mas, apesar de «muyto ferido» - no dizer de Albuquerque -, quando nas areias do mar Vermelho a nau tocou em seco, Diogo Fernandes logo «sayo acima e mandou muy bem a não, e trabalhou muyto pela sua salvaçam».
Não era só nos campos de batalha ou nos perigos do mar que Diogo Fernandes brilhava. No ano de 1514, vemo-lo encarregado de uma luzida embaixada à corte de Cambaia, com a delicada missão de sondar as disposições do soberano deste grande reino, com referência a uma fortaleza portuguesa em Dio. Diogo Fernandes era «homem abastado e grandioso». Compreendia perfeitamente as ideias de Albuquerque sobre a necessidade de fazer figura nas deslumbrantes cortes orientais, e não se importava de gastar dinheiro no desempenho do seu papel. Mandou fazer ricos vestidos, levou preciosas pratas para serviço de mesa. Para o seu aposento e de seu séquito, armou uma magnífica tenda, onde podiam caber 500 pessoas. De fora era coberta de panos brancos e coloridos, e por dentro toda forrada de seda. Tinha compartimentos de câmara e sala, havendo naquela um leito dourado, com paramentos e colchas de seda e almofadas de cetim, e nesta viam-se cadeiras rasas e escabelos cobertos de belas alcatifas. Diogo Fernandes levava também cozinheiros muito bons, para banquetear os grandes da terra «com muytas conservas e vinhos finos e cheirosos». E, para maior fausto, o Governador dera ao seu embaixador uma garbosa guarda de cem canarins com suas armas.
Diogo Fernandes, belo homem, de modos insinuantes, trajando jorneia de cetim carmesim forrado de damasco, e gibão do mesmo teor, mangas com muitas pontas de ouro e aljôfar, calças de tafetá azul com rosas douradas, gorro de veludo com penacho branco na cabeça, e pantufas de veludo nos pés – fez muito boa impressão na corte magnífica do grande reino de Cambaia. O rei mostrou prazer na sua embaixada. Encheu os enviados de presentes, para si e para o Governador – entre outros um rinoceronte para D. Manuel! Ofereceu meia dúzia de pontos para escolher para a fortaleza – tudo menos Dio, que a não queria largar o seu capitão favorito Maliqueaiaz – de maneira que a embaixada, se bem que servindo para enaltecer o prestígio português, não chegou desta vez à conclusão.
Foi logo a seguir a isto que Diogo Fernandes, comandando a nau «Frol da Rosa», acompanhou a última expedição de seu capitão-mor, de que resultou a segunda – e definitiva – conquista de Ormuz. Aí, Diogo Fernandes assistiu a tudo – à morte do guazil Ras Ahmed, de cuja tirania o Governador veio livrar o moço rei, à fundação da fortaleza portuguesa, ao trabalho insano da sua construção nos ardentes meses de Verão do golfo Pérsico, até que Afonso de Albuquerque já moribundo, embarcou para a Índia, escolhendo a nau do amigo Diogo Fernandes. Este acompanhou os últimos instantes dolorosos do herói, ferido de morte pela ingratidão régia. Foi para ele dirigido o famoso desabafo: - Mal com el-rei por amor dos homens, mas com os homens por amor de el-rei! - «Que vos parece Senhor Diogo Fernandes?»
Como era de esperar, Diogo Fernandes não se deixou ficar na Índia, durante o governo de Lopo Soares, com o espectador da inveja selvagem com que este se punha a desfazer todas as «cousas de Afonso de Albuquerque». Regressou ao Reino. Para receber de seu rei recompensa, digna de tantos anos de abnegado serviço no Oriente? Não nos consta que tal sucedesse. Somente em 1519, governando Diogo Lopes de Sequeira, vemos Diogo Fernandes voltar à Índia, provido na capitania da fortaleza de Dio – ainda por fazer! Encontramos o homem sempre file a si mesmo, destemido sem espalhafato, merecendo a confiança de seus superiores, benquisto por ser amigo de seus subordinados, e leal camarada de seus iguais. Ainda assim, foi vítima da mesquinha inveja de certos deles, que contrariavam a conquista de Dio – só porque a capitania lhe havia de ficar.
Afinal, nunca chegou a servi-la. Dio só veio a ser portuguesa catorze anos mais tarde. O bom e valente Diogo Fernandes morreu no entanto em 1521, de um pelouro perdido, no decurso de um combate naval ao largo de Chaul. Morreu no posto de honra, que nunca na vida abandonara.
Foi logo a seguir a isto que Diogo Fernandes, comandando a nau «Frol da Rosa», acompanhou a última expedição de seu capitão-mor, de que resultou a segunda – e definitiva – conquista de Ormuz. Aí, Diogo Fernandes assistiu a tudo – à morte do guazil Ras Ahmed, de cuja tirania o Governador veio livrar o moço rei, à fundação da fortaleza portuguesa, ao trabalho insano da sua construção nos ardentes meses de Verão do golfo Pérsico, até que Afonso de Albuquerque já moribundo, embarcou para a Índia, escolhendo a nau do amigo Diogo Fernandes. Este acompanhou os últimos instantes dolorosos do herói, ferido de morte pela ingratidão régia. Foi para ele dirigido o famoso desabafo: - Mal com el-rei por amor dos homens, mas com os homens por amor de el-rei! - «Que vos parece Senhor Diogo Fernandes?»
Como era de esperar, Diogo Fernandes não se deixou ficar na Índia, durante o governo de Lopo Soares, com o espectador da inveja selvagem com que este se punha a desfazer todas as «cousas de Afonso de Albuquerque». Regressou ao Reino. Para receber de seu rei recompensa, digna de tantos anos de abnegado serviço no Oriente? Não nos consta que tal sucedesse. Somente em 1519, governando Diogo Lopes de Sequeira, vemos Diogo Fernandes voltar à Índia, provido na capitania da fortaleza de Dio – ainda por fazer! Encontramos o homem sempre file a si mesmo, destemido sem espalhafato, merecendo a confiança de seus superiores, benquisto por ser amigo de seus subordinados, e leal camarada de seus iguais. Ainda assim, foi vítima da mesquinha inveja de certos deles, que contrariavam a conquista de Dio – só porque a capitania lhe havia de ficar.
Afinal, nunca chegou a servi-la. Dio só veio a ser portuguesa catorze anos mais tarde. O bom e valente Diogo Fernandes morreu no entanto em 1521, de um pelouro perdido, no decurso de um combate naval ao largo de Chaul. Morreu no posto de honra, que nunca na vida abandonara.